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Na Roça, se silenciares a cidade que há em ti, renascerás rural,
místico, íntimo do Criador, sensível ao Seu
Sopro, dócil ao Seu Cristo. |
Aquele enxame farto efémero de libélulas, voando à caça de moscas, numa vertigem rectilínea, obliqua, para trás, para diante, em torno da velha odorosa baraúna lá de casa; aquele beija-flor, mínimo, supersónico, em voo brusco, de arbusto em arbusto, entre pétalas rosa, roxo, encarnado; aquela profusão de pássaros sonoros e multicolores, laranja vivo, preto e branco, encarnado, o pica-pau de penugem à moicano, mas especialmente o pássaro azul, sempre só, sempre a solo, entre os demais, todos bicando os nossos restos de arroz, feijão, cuscuz, nenhum deles medindo demasiado distâncias com humanos; aquele sol tão ardente, mal o dia nasce, e ainda ardente enquanto se põe; aqueles crepúsculos de fogo no fim da tarde ou ao romper do dia perante os quais é preciso rezar; a hora intensa do amor, quando a hora do amor intenso chegou; aquele último suspiro da madrugada, o alfange lunar, dois planetas em conjunção; as minhas costas nuas, meu peito, embrenhado na caatinga por horas sentindo os cheiros umburana, quebra-faca, perscrutando chocalhos, revirando cristais, pontapeando espinhos; sol posto, abelhões zumbindo religiosamente como que em adoração ao Criador, entre os ramos e as flores da grande árvore; aquele silêncio místico à hora rubra do horizonte rubro; aquele céu nocturno absoluto, silente, repleto de estrelas desnudando sem mácula a Via Láctea; aquele meu reclinar na rede defronte a quase tudo isto e repleto disto tudo. Este meu encontro com o Criador, à brisa da tarde, e o Seu Santo, lá, no mais completo abandono filial, sem ânsias, sem medos, sem passado, sem futuro, absorto no Momento, fora do mundo, submerso no Cerne.
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