BOIS (AINDA) ANÓNIMOS


«O general Garcia Leandro publicou aqui no Expresso,
no sábado passado, uma espécie de protopronunciamento militar deveras interessante.
lkj
Em substância, o general diz que o país está minado pela corrupção
e pelo mau governo dos políticos e que só não avança
para encabeçar um 'movimento de indignação', conforme muito solicitado,
porque vivemos hoje na União Europeia
- onde estas aventuras 'venezuelanas' deixaram há muito de ter viabilidade.
lkj
Mas essa não é, em boa verdade, a única razão que trava o general
nas suas generosas intenções, se é que ele não o sabe:
a outra razão é porque o país acolheria hoje com uma gargalhada devastadora
qualquer ridícula tentativa de pronunciamento militar.
çlk
Com a extinção do Conselho da Revolução,
algures na década de 80, livrámo-nos de vez da tutela militar
e já ninguém, nem a novíssima geração, leva a sério um militar
que queira salvar a pátria. Aliás, o próprio texto do general Garcia Leandro
- confirmando que os textos de justificação dos pronunciamentos militares
jamais ficarão para a história da literatura universal -
é, em si mesmo, incapaz de arregimentar
até um quartel de bombeiros, tão frouxas e tão confusas são as razões aduzidas.
lkj
A corrupção é, de facto, um problema - aqui e em muitos outros lugares.
Infelizmente, como o general deve saber, entre nós,
nem os militares lhe escapam. Temos um alto oficial da Armada,
durante anos responsável técnico pelas compras do material de guerra do ramo,
preso sob suspeita de corrupção. E, da compra dos aviões A-7
até à dos submarinos, não há razão alguma para acreditar que,
se corrupção houve, os militares envolvidos nos negócios
não molharam também a mão na massa.
No que toca a gastos de dinheiros públicos injustificados,
os militares têm muitas contas a prestar ao país.
çlk
Todavia, o que diz o general Garcia Leandro é aquilo que muitos pensam,
e não apenas 'a rua'. O facto de ser general não o torna mais qualificado
do que qualquer outro nos seus julgamentos nem lhe dá o direito
a querer encabeçar um 'movimento de indignação', seja isso o que for.
lkj
Restam as causas de indignação, que, essas sim, são reais e poderosas.
Recentemente, também o novo bastonário dos advogados
veio agitar as águas turvas do regime denunciando alto e bom som
coisas que todos sabemos serem rigorosamente verdadeiras:
que há advogados que fazem política no Parlamento e negócios com coisa pública cá fora;
que há ex-governantes que saltam do Estado
directamente para empresas com que antes negociaram em nome do interesse público;
que há uma justiça para ricos e outra para pobres
e por isso é que não há um único poderoso atrás das grades,
embora não faltem motivos para tal.
lkj
Caíram todos em cima do dr. Marinho e Pinto,
chamando-lhe demagogo, vendedor de feira
e acusando-o de denunciar a corrupção sem apresentar 'provas'.
Num gesto inédito de insubordinação estatutária,
o presidente do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados
veio ameaçar o próprio bastonário com um processo disciplinar se não se calasse.
lkj
Todos fingiram entender que ele falava da corrupção - um mal universal,
que não afecta apenas Portugal. Piedosa mentira.
O que o dr. Marinho e Pinto denunciou foi o descarado tráfico de influências
entre o político e o económico, o público e o privado,
que, essa sim, é uma imagem de marca nossa.
lkj
Meia dúzia de ministros de qualquer Governo,
de empresários privados, de gestores públicos
e de poderosos escritórios de advocacia decidem entre si
como é que o Estado vai gastar os milhões que gasta em obras públicas,
como é que vai pagar os seus fornecimentos,
como é que vai privatizar as suas empresas,
em que termos vai negociar contratos de concessão,
que excepções vai abrir para conceder direitos de construção em zonas de paisagem protegida.
lkj
Desde a gestão privada de hospitais públicos
à concessão da exploração de pontes,
passando pela construção do que quer que seja
ou pela compra de armamento militar,
não há orçamento que não derrape largamente,
não há negócio que não termine com lucros muito além dos previstos
para os privados e total impunidade para os gestores públicos que lhes deram causa.
lkj
Contratar com o Estado português é sinónimo de lucro disparatado e risco nulo.
E isso não significa necessariamente que,
algures no circuito, tenha havido alguém a deixar-se corromper
para que a factura subisse. Esse tipo de corrupção existe,
mas a um nível menor, ao nível autárquico, por exemplo.
lkj
Aqui, do que se trata é da troca de favores e influências
entre uma casta que controla os grandes negócios com o Estado.
Hoje, A faz um favor a B - entrega-lhe uma empreitada que vale milhões
- e amanhã é a vez de B retribuir, contratando A para os seus quadros
ou entregando-lhe por sua vez uma empreitada em que ele esteja interessado.
E no meio estão C e D, que funcionam como advogados e jurisconsultos de ambos os lados: tão depressa negoceiam em nome do Estado
como em nome de clientes privados com o Estado,
tão depressa dão pareceres a um como a outro e, não raras vezes,
estão dos dois lados simultaneamente, em processos diferentes.
Necessidade obrigando, chegam a produzir doutos pareceres
de sentido oposto em casos rigorosamente idênticos,
em que só mudou o cliente que servem.
lkj
Não me admira nada que o dr. Marinho e Pinto
tenha vindo desinquietar toda esta gente
- ainda por cima se não se esquece de denunciar uma justiça que,
pela inércia e pelo facilitismo,
pactua com aqueles que têm a possibilidade material
de fazer arrastar os processos em tribunal
até que eles morram de podridão e esquecimento.
lkj
O mal causado não consiste apenas no desperdício de dinheiros públicos
ou na instalação de uma cultura de impunidade e batota,
que desmoraliza o país são.
Uma das maiores causas para o atraso endémico de Portugal
é esta chamada iniciativa privada que domina os negócios de milhões
mas que não sabe sobreviver sem os seus três factores de êxito:
salários baixos,
"offshores" para tratar do Fisco
e negócios garantidos com o Estado.
lkj
Temo só de pensar que vem aí o TGV e um novo aeroporto,
onde um país pobre e economicamente estagnado,
um país a quem tantos sacrifícios têm sido pedidos
em nome do combate ao défice vai atirar pela janela milhões e milhões
em trabalhos extra, comissões a intermediários,
honorários de consultadoria externa e de pareceres
e todas as demais alcavalas que sempre acompanham cada empreitada pública.
lkj
Foi assim com o CCB,
a Ponte Vasco da Gama,
o Túnel do Marquês,
o Hospital Amadora-Sintra,
o Casino de Lisboa oferecido ao sr. Stanley Ho (edifício incluído!)
e tudo o mais, tudo rigorosamente, a que o Estado deitou mãos.
lkj
Farto de assistir a este espectáculo decadente e impune,
legitimado pelo exemplo que vem de cima,
grande parte do país já percebeu que a regra é exigir do Estado privilégios e dinheiro fácil.
A outra parte, se não acredita nem deseja militares salvadores,
só lhe resta isto: indignar-se e chamar os bois pelos nomes.»

Comments

Reavel said…
muito obrigada por sue mensagem... my portuguese is pretty bad haha anyways thanks for your visit and comment. :D So glad you enjoyed it.
Tiago R Cardoso said…
Interessante como é que um general, que por norma tem mais capacidade militar, dá uns tiros de canhão para o ar e tem menos impacto que os fogachos do Dr. Marinho Pinto.

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