25 A, MALÍCIA, ACIDENTALIDADE, INCOMPLETUDE
Tinha eu apenas quatro anos e não poderia saber coisa nenhuma, muito menos que se as ruas ferviam, era mais ou menos por acaso, porque acidentalmente uma corporação militar andava insatisfeita e, infeccionada com o messianismo soviético, achou que podia mudar o muro que lhe barrava a progressão na carreira, revestindo-se de veleidades golpistas e revolucionárias à maneira bolchevique, custasse o que custasse, desse por onde desse.
Depois, só muito depois, fui compreendendo a estirpe de eventos, mobilizações e aquisições que se sucederam no e após o 25 de Abril, uma Revolução Acidental que deu com um Povo Romântico, Manso, Dorido, Domesticado na Pasmaceira Doméstica Paterna do falecido dr. Salazar, Povo Apático, Amarelo, Pobre, Bruto, cujos filhos se submetiam a trabalhos, dores e agruras nos vários teatros de guerra em África, sangrando, morrendo, perdendo a cabeça e infectando as partes despudicas com fardos de africanas. Revolução que depois ganhou uma espécie de vida própria caminhando mal equilibrada no grande arame geoestratégico mundial, entre o perigo de fazer-nos resvalar para um Estado Cubanizado no Extremo Ocidental da Europa, seguido de uma Anexação pela Espanha Franquista, ou para um Mix Nem-Carne-Nem-Peixe de NeoCorporativismo Maçónico, Democrathíbrido, onde à figura de um Ditador sucede simploriamente a figura de um Chupador Elegível, basicamente os vascos, os soares, os almeidas santinhos, os eternos cavacos, gente que cresceu a arrotar democracia e a tratar mal as escoltas policiais, gente que tirava sonecas entre pregações e tinha o Estado a pagar-lhe as multas por excesso de velocidade e excesso de liberdade, gente que era democraticamente papal e democraticamente infalível às claras e que cresceu ainda mais por décadas na sombra, convertendo-se em eminências pardas e tutelares de uma Coisa Rendosa para Si — o Regime, as suas Fundações e Privilégios — Regime tão deles e Coisa tão rendosa, que não há dúvida enriqueceram fabulosamente e influenciaram fabulosamente, eles e quantos mais chuparam a República até às consequências que hoje, mais swap menos swap, estão à vista de todos.
A pressa com que se operou a descolonização foi uma tragédia servida a frio no calor do tumulto, efervescência que matou gente inocente longe da vista e liquidou sonhos de todas as cores. Uma oportunidade perdida, uma vez que, conforme escreveu António José Saraiva, «havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro do general Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa.» O que se viu foi o oposto. O que se fez organizou foi o caos deliberado. Rapazolas sucederam a homens tarimbados na defesa e no sentido de Estado, por mais defeitos e vícios que acumulassem, anquilosamento do dictat. O vírus da ideologia incitou a uma debandada aflitiva, desleixada, onde antes se combatia, e a deserção foi uma deserção de nós mesmos, das nossas responsabilidades sobre outros portugueses e africanos com sentimento português de repente sem qualquer guarida.
Depois, só muito depois, fui compreendendo a estirpe de eventos, mobilizações e aquisições que se sucederam no e após o 25 de Abril, uma Revolução Acidental que deu com um Povo Romântico, Manso, Dorido, Domesticado na Pasmaceira Doméstica Paterna do falecido dr. Salazar, Povo Apático, Amarelo, Pobre, Bruto, cujos filhos se submetiam a trabalhos, dores e agruras nos vários teatros de guerra em África, sangrando, morrendo, perdendo a cabeça e infectando as partes despudicas com fardos de africanas. Revolução que depois ganhou uma espécie de vida própria caminhando mal equilibrada no grande arame geoestratégico mundial, entre o perigo de fazer-nos resvalar para um Estado Cubanizado no Extremo Ocidental da Europa, seguido de uma Anexação pela Espanha Franquista, ou para um Mix Nem-Carne-Nem-Peixe de NeoCorporativismo Maçónico, Democrathíbrido, onde à figura de um Ditador sucede simploriamente a figura de um Chupador Elegível, basicamente os vascos, os soares, os almeidas santinhos, os eternos cavacos, gente que cresceu a arrotar democracia e a tratar mal as escoltas policiais, gente que tirava sonecas entre pregações e tinha o Estado a pagar-lhe as multas por excesso de velocidade e excesso de liberdade, gente que era democraticamente papal e democraticamente infalível às claras e que cresceu ainda mais por décadas na sombra, convertendo-se em eminências pardas e tutelares de uma Coisa Rendosa para Si — o Regime, as suas Fundações e Privilégios — Regime tão deles e Coisa tão rendosa, que não há dúvida enriqueceram fabulosamente e influenciaram fabulosamente, eles e quantos mais chuparam a República até às consequências que hoje, mais swap menos swap, estão à vista de todos.
A pressa com que se operou a descolonização foi uma tragédia servida a frio no calor do tumulto, efervescência que matou gente inocente longe da vista e liquidou sonhos de todas as cores. Uma oportunidade perdida, uma vez que, conforme escreveu António José Saraiva, «havia trunfos para a realizar em boa ordem e com a vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro Portugal e o Futuro do general Spínola, que tivera a aceitação nacional e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa.» O que se viu foi o oposto. O que se fez organizou foi o caos deliberado. Rapazolas sucederam a homens tarimbados na defesa e no sentido de Estado, por mais defeitos e vícios que acumulassem, anquilosamento do dictat. O vírus da ideologia incitou a uma debandada aflitiva, desleixada, onde antes se combatia, e a deserção foi uma deserção de nós mesmos, das nossas responsabilidades sobre outros portugueses e africanos com sentimento português de repente sem qualquer guarida.
António José Saraiva assinala que este momento «Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir. Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas:
Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar;
Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas.»
Sim, eu nada sabia de Abril e saber de Abril, à medida que fui sabendo, só poderia representar também desmitificar e desmistificar Abril, as imperfeições, cobardias e oportunismos que representou, a mediocrização do conceito de democracia, o rebaixamento da liberdade, afinal inacessíveis num Estado que teimou em falir, uma, duas, três vezes, esta é a terceira, condenando gerações, obrigando a êxodos, separações, rupturas. Porquê? Porque a bactéria corporativista mudara de pele: tem estado viva a tirar partido da nossa passividade e falta de participação cívica. A casta de pategos que sucedeu aos Pândegos da Ditadura não era somente patética, incompetente e amadora, foi aquilo que António José Saraiva, num registo particularmente implacável, caracterizou, taxando a elite de imberbes que sucedeu à elite velhaca: «Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários». E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do Exército para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige em grau elevadíssimo o moral da tropa. Neste caso a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram conscientemente a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que nas circunstâncias do momento eram puramente criminosas. Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve.»
Celebrar Abril deveria ser qualquer coisa de fabuloso, não fosse a tragédia que lhe está imbricada e cujo efeito e fruto somos hoje milhares a suportá-los. Alombar com o jugo da Justiça deficitária, da falta de oportunidades, de uma economia mortiça parasitada por um Estado Caloteiro, Megalómano, Opressor, Traidor do nosso Futuro. A pressa de entregar ao bloco soviético o que apascentamos por África ao longo de tantos séculos passava por entregar também Portugal à mesma esfera, se as coisas corressem plácidas como prometiam.
O regime deposto necessitava de uma operação especial onde se transferisse a papel químico estruturas estabelecidas. Mais que liquidá-lo, urgia decalcar-lhe, por impregnação, os processos ocultos e vantajosos de exercício do Poder real, da Política Real, manobrismo que perpetuasse a nova casta numa posição de charneira na hora de influenciar e prevalecer sobre todos os acontecimentos e movimentos: «Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos. Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial.»
Significativa aquisição da 'democracia'? A impunidade das elites, dos endinheirados agregados à Política, garantismo legal na protecção da corrupção, favorecimento favoritista que rasurou, na sociedade, quaisquer vestígios de mérito e distribuiu, em troca de lealdade, um feixe intrincado de silêncios e protecções cruzadas, benesses sobre benesses a familiares, a apaniguados, a gerações de beijadores de mão e lambedores de cus, os quais que vemos, ainda hoje, desfilar nas TV e a debitar nas Rádios.
Assim se explica que, ao contrário do processo de Cura e Reconciliação, na África do Sul pós-apartheid, não tivéssemos tido qualquer processo de acareamento e esclarecimento de factos, entre vítimas e algozes: «Em qualquer caso já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outros talvez piores os vieram desculpar. Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril. Havia, também, um malefício imputado ao antigo regime, que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados. Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como não se fez a descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os homens não substituíram os mesmos; a um regime monopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente.»
Nasceu uma narrativa colorida e heróica típica das grandes histórias da carochinha, onde se mitifica a acidentalidade e se branqueia a complexidade holística de um problema todo ele capaz de explicar o fracasso do Estado Português, quando entregue à voracidade e à ganância de uma elite de patos bravos, políticos de baixa extração, furões, psicopatas com Egos Cor-de-Filhos-da-Puta, sempre à tona de nos terem fodido largamente e para os quais a prisão do Isaltino está sempre aberta, à espera de os ver confrontados com tanto dolo, tanta malícia, a morte e as carências de milhões de portugueses.
Sobre os nossos novos políticos, escreve António José Saraiva, minha bíblia para conhecer fora das Mistificações e das Mitificações, o efeito Abril, algo que me parece inatacável: «Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista». Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior; mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois, como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob a capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquos, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio honesto de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco. Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobria uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa História uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa História e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de Nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro. É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de Nação independente.»
Foda-se! Não tenho idade para dizê-lo melhor e nunca o diria melhor que AJS, mas eu, que na altura só tinha quatro anos e brincava feliz no meu pátio aos vendedores de gelados de praia, apregoando «Olha o bom gelado!», divertindo a família; eu, que percebia [e me contagiava com] a excitação nos que assistiam pela TV grande da sala às reportagens acaloradas dessa hora; eu jamais deixarei de ver a puta da revolução senão também pelo doloroso ângulo patriota e frontal de António José Saraiva. Revolução-é-o-há, Revolução-só-temos-isto, Revolução Pacífica, graças a Deus, mas imperfeita, ainda que me desse, valha-lhe isso, esta liberdade para a insultar pelo que depois me foi sonegado e a milhões de portugueses.
Sim, também foi bela e sublime a Revolução. Respirou-se finalmente e pudemos sonhar e sorrir com largueza. Ainda podemos sacar o melhor que ela inspirou, a sabedoria para se ser feliz, mesmo sem dinheiro, a irreverência do debate sem palas nem apriorismos, a frescura da participação activa na construção diária da nossa vida comum, um olhar novo sobre a finitude precária e frágil do nosso Planeta: não há carne infinita nem o peixe medra ilimitado nos mares, mais de metade dos seres humanos passa fome. Não há combustíveis eternos ou jazidas ilimitadas de petróleo. Não podemos coleccionar imóveis e automóveis indefinidamente, vestuário para cada dia do ano, sem que tudo isso represente uma pressão intolerável, escarro e insulto sobre a sustentabilidade do nosso Planeta. Portanto, a nossa Liberdade terá de ter um novo desenho: muitíssimo mais fruição e responsabilidade cívica, muitíssimo menos consumismo, ganância, insaciedade, revolucionando a nossa vida com aqueles novos hábitos que enfrentem realisticamente os limites finitos de uma Terra finita.
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