MONÓLOGO DA IRMÃ DÚVIDA
«Não aborteis, que diabo!
Por que abortais, imorais? - penso eu cá comigo,
de essas mulheres ricas e putas, de essas mulheres putas e pobres,
pois o meu pensamento ecoa-me como uma vergastada
de indignação santíssima e imaculadíssima,
torre de marfim, diadema,
de abjecção ao pecado dos homens!
Cuspo, cuspo na cidade dos homens e nas suas corrupções lúbricas
que conduzem direitinhas à perdição danada do fogo do inferno.
Tanta irresponsabilidade, porra,
e em sexo anal contraceptivo ninguém pensa!
Fodem todos como coelhos,
até formam associações,
mas afinal não se lembram da camisa-de-vénus.
Pensam todos no parque de diversões da foda,
e depois vê-se,
não pensam é no diafragma e no espermicida.
Isto é um deixar o carrinho mesmo à portinha do cemitério,
mesmo à porta do empreguinho,
mesmo à porta da lojinha,
mesmo à porta do depois vê-se.
Andar, usar as pernas, é para os outros.
Abortar brada aos Céus e este povo é um povo preguiçoso,
com o corpo mole.
Então o verde? Quero atravessar logo esta merda!
E agora atravessa-se outra vez à nossa frente
isto de votar no Referendo Abortivo!
Mas então não foi o outro Referendo já um aborto?!
Foram todos para a praia e ficou tudo igual,
menos o custo do exercício da cidadania, que foi caro e inútil,
continuou a penalizar-se, e, de vez em quando, a penalizar-se mediaticamente
com as mulheres do PC e do BE a fazerem solidários
broches aos longos micofones negros das TV's
e a empunhar cartazes libertários:
"No meu cu mando eu".
Se é para penalizar, é para penalizar.
Se não é para penalizar, não é para penalizar.
Que achais, Senhor? É crime, bem sabemos.
O Cardeal diz que é um problema de cada consciência,
mas se se fala em consciência é porque é mal abortalhar.
Será? Deve ser. Só se pode até às dez semanas, mais ou menos,
para se ser rigoroso e científico no torcer do gasganete.
Tem de vir agora um paneleiro de um governo fascizóide,
tecnologicamente obcecado,
intolerante com os legitimamente indignados no protesto, na greve,
um governo mentiroso nas desculpas e brutal nas taxas,
nos impostos,
nas coimas,
no caralho,
um governo insolente com os fracos,
sempre primo-ministerialmente sorridente e com papos sob os olhos,
assim como um parlamento vassalo, acrítico,
o parlamento da anomia,
blaterar o agora é que é Referendo!
Um governo reformista, mas elefantino e porcelanês.
Um governo da política selvática com os pequenos.
Um governo da política safari com os professores
da socióloga funérea e triste.
Os caminhos do mundo,
ai os caminhos do mundo,
Senhor!
Bem, é melhor atravessar.
E Deus que me perdoe.»
Joaquim Santos
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