HORA TURVA: FAZ DE CONTA QUE ROMEU NÃO MORRIA


Uma hora turva é o que é, Julieta: olha-se em volta
e de repente acomete-nos uma baforada de nada.
O nada chega e invade o nosso cerne.
Ó repelência não haver o que se sustenha sob o céu!
Tudo fenece, tudo passa.
Vi os teus trejeitos hoje, Julieta.
Vi os olhares que trocaste,
tão subtis, tão encabulados e esforçadamente discretos,
e não comigo e percebi o que me falta.
Falta-me
morrer, querida.
Repara: nada há ou poderia haver em mim que te ocultasse.
Sou-te mais transparente que o vidro acabado de limpar,
mais translúcido que a água acabada de degelar no cume da montanha,
mas hoje, depois e apesar de mim,
falta-me que eu morra.
Não adianta inventar um outro enredo.
Não adianta.
Reparei um pouco melhor em ti,
sondei-te,
radiografei-te, e percebi o que tu, querida, sedimentas.
Sedimentas ser mulher.
É impossível ser de outro modo: quanta bênção e quanto barro
há em seres mulher
e teres em ti esse ser todo de fêmea feito.
Comer-te-ia como um lobo, como um touro comer-te-ia, compreendes, querida?
Morrer.
Mil milhões de vezes
morrer disto.
Sair completamente da caverna das ilusões e, isso,
já percebeste:
morrer.
Não consigo explicar-te melhor que isto: tenho de
morrer.
Morrer
porque somos - todos nós, os imundos humanos - diferentes.
Camaleões perante o contexto e perante quem nos aparece pela frente,
nos encanta ou não encanta,
e eu, querida Julieta, que ando sempre incondicional em qualquer merda,
até contigo,
percebes, querida?, incondicional,
começo a enegrecer cá dentro
porque é tudo tão relativo para todos, menos para mim,
que o melhor é projectar uma casa nova chamada
morrer.
Sim, seja a minha viagem intercontinental (não percebes o que intercontinental seja, um dia perceberás), a minha ida à China em negócios,
seja a minha sorte Montecchio este ser completamente ignorado
e desprezado e desconhecido no que escrevo, sim, e também
morrer.
O mundo que há nos meus amigos de merda (todos básicos, primitivos, covardes e mundanos)
e que há em ti, Julieta Capuleto, e que afinal se me incrustou alheio,
advindo das merdas que me aconteceram,
esse mundo, querida, está a dizer-me: és bem vindo de
morrer.
E eu estou de acordo, querida.
Há um filme filho da puta (não percebes, mas depois perceberás o que filme é),
minha sina, maldição minha,
que eu tenha de ver os cacos em câmera lenta (não percebes, mas depois perceberás o que câmera é) a serem cacos,
que eu perceba e que me meta nojo que eu perceba o tão a mais que ando aqui.
Engano dos enganos, querida, é estar vivo.
Bem-aventurança com toda a certíssima certeza é ir
morrer,
querida.
Este não é um discurso romântico nem desesperado intemporal de quem se vá matar.
Sou eu a tomar conta da minha verdade de esta hora turva.
Hoje eu teria preferido ser cego, surdo, mudo e morto, querida.
Nem sequer pele queria ter e muito menos coração.
Vi de mais, hoje, querida Julieta: qualquer coisa de impenetrável para mim,
um espaço e um contexto e uma cumplicidade em fracção de microssegundos de olhar
bastaram para que todo eu me sentisse o corno a mais nesta vida,
quem Romeu eu era e quem Romeu eu sou - para me fazer falta, conforme faz,
morrer.
O meu coração acabo de o extirpar e de o dar de comer às galinhas.
A nossa gata anda prenhe, ela é cheia de personalidade.
Bem pode comer o meu coração que lhe dará sustância.
Eu sei que, com ela, é garantido que o cague e enterre
- é gata, é fêmea, é esperta e, fazendo parte da estirpe feminina do Cosmos como tu,
tem camadas complexas, impenetráveis, tem sedimentos de emoções e sentimentos que,
por precários, provisórios e secretos que sejam, pensáveis que sejam,
originam todas as horas turvas, esta hora turva,
onde o principal desejo, a fundamental conclusão é que chegou a hora de eu
morrer,
assim como um página pública que ninguém visita,
que é pessoal, assinada e anónima,
que é desprezível e cagável como esta para ti, minha querida Julieta.
O quê, eu a fazer parte do mundo,
a ter existido nisto?
Provavelmente houve engano, querida, no desenho de esta peça.
Shakespeare que se foda, eu tenho de
morrer!
Não fiques a olhar para mim.
Não vou à esquina comprar cigarros e atirar-me para debaixo de uma carroça.
Vou só a ali a ver se
já morri.
Morrer, morrer e morrer, percebes, querida?
Fora isso, parece que te adoro. Reparaste?

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