Não é propriamente por uma moção de desânimo ou de auto-rejeição que, enquanto desempregado, passei a declarar-me radical e subversivamente contra o Consumo, todo o Consumo Pessoal, fora do estritamente indispensável sob os imperativos inerentes à minha paternidade. Os espíritos mais coreáceos, no seu empedernimento ofensivo e exibicionismo onanista do comentário, podem até brincar em torno do facto de a milhares de portugueses e a milhares de espanhóis faltar trabalho, escassearem recursos para sobreviverem dignamente, como se a circunstância pessoal do Palavrossavrvs fosse um cómico e desprezível problema dele e não o de tantos outros milhões, fruto amargo de todas as ilusórias legislaturas precedentes, em grande parte, noutra parte, puro azar, macrogestão, merda-FMI.
Os poderes da
corrupção política em troca de uma generalizada dissolução social, os poderes da lógica do benefício pessoal ilícito na política em troca da desgraça de milhares, estão aí nos seus efeitos sobre mim.
Esses poderes negros são fortes. A bronca não é para eles. É mais fácil manipular as pessoas que se auto-rejeitam do que as que se auto-aceitam. Rompo com a possibilidade de ser manipulado a começar pelo impulso de comprar. Consumir ávida e compulsivamente para além, dentro ou abaixo das próprias possibilidades tornou-se para mim uma desordem própria da auto-negação e da recusa em escutar o meu íntimo na sua fome de integridade e equilíbrio. Começo por assumir e aceitar a minha vulnerabilidade não como um medo de ser inútil, mas como uma certeza, já que tenho imenso tempo para contemplá-la. A certeza de ser amado. Um nada, qualquer coisa que nos amesquinhe insuportavelmente, pode levar-nos a uma profunda depressão e até ao suicídio.
Isto torna-se impossível quando nos sentimos amados, amados por Deus, cuja voz de amor e ternura ressoa desde o mais fundo sem cessar. Estar desempregado, sem dinheiro, sem esperança, sem ânimo, pode e deve, por isso mesmo, ser transformado, por um lado, 1. numa reacção cívica, boicote provocador às expectativas da publicidade e às falácias da falsa necessidade, seduções em que nos enredamos pela Rádio, outdoors, TV, 2. numa reacção minha, consciente, contra o impulso animal por gastar sem verdadeira justificação, 3. num atentado às veleidades desta e de qualquer outra execução orçamental que sanguessuga deslealmente trabalhadores, pensionistas e desempregados; e, por outro, espiritualmente, numa oportunidade para aprofundar a minha capacidade de sentir esta alegria indestrutível, mesmo no meio de um grande sofrimento.
Pois bem, não gastarei os meus trocos em coisa nenhuma e tentarei viver esta alegria de ser disciplinado, purificado, corrigido, como um atleta, um corredor, cujo sacrifício, suor, esforço doloroso, não superam a alegria de estar prestes a cruzar a meta, de chegar a um destino interior delicioso.
Nem todos podemos emigrar, ser inovadores ou grávidos de ideias que vendem. Os que ficámos em Portugal, apesar do deserto social e do desmantelamento económico em decurso, eu e milhares, somos os tais. Somos os que ficam ou podem vir a ficar para trás. Esta morte laboral, social, pessoal, mereceria um Requiem oficiado pelos
sacerdotes do Caos e da Degenerescência do Regime, a maioria bem abotoada às nossas custas. Mas não. Merece antes uma cantiga de escárnio e bom humor, uma modinha trauteada com ironia.
O caminho por mim escolhido envolve a plenitude noutras áreas de realização não remunerada nem remunerável: nem uma moeda entra no meu bolso mas também nem uma moeda ociosa sairá dele, enquanto faço da minha alegria interior o meu próprio foco de luz, na procura e encontro de um novo modo de vida rigoroso fora da dependência consumista e imune às lógicas tradicionais de aceitação condicionada do indivíduo segundo a sua utilidade social, a sua vertente prática. Ser é Tudo. Ter é Mentira.
Sob o amor incondicional de Deus por mim nada me falta e nada verdadeiramente importa.
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