VENOMOUS WARNING - O ANTÍDOTO


Descer, conduzindo, a Avenida da Constituição, no Porto,
impõe-se-me como um acto contemplativo do horizonte. Ir para Oeste, ainda.
Há mais que uma sensação de distância, quando se vem desde as Antas até à Boavista
e se enfrenta esse caminho inflado de Poentes, agora, sob o calor que vai fazendo,
ou então sob as brisas de calor esmaecidas das estações outonal e primaveril.
Há mais. Sinto com doçura o pouco que me falta para cumprir um desejo de Mar,
a sua espuma, o veludo plácido, lento, das ondas coleando esverdeadas
entre as rochas, sob luz meiga do meio de uma tarde de Julho, reluzindo mansa no oceano,
e com a aura mágica da minha música favorita ressoando alto no meu carro.
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O Festival Panda, há mais ou menos doze dias, levou-me ao Estádio do Dragão
com a minha filhinha de dois anos. Um bom amigo fez-me o convite
no fim de uma daquelas conversas intensas pelo MSN e em boa hora o aceitei.
Obtivera bilhetes gratuitos extra graças a contactos do trabalho. Quisera partilhar comigo.
No dia seguinte, lá estava eu à hora combinada no combinado ponto de encontro.
Aguardei. Um português feliz da vida passou por mim: tinha um bilhete a mais
e forcejou por oferecer-mo. Aceitei, agradecido.
Chegado o meu amigo com as suas filhas, entrámos.
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Aquele relvado bem tratado convidava a longas horas de barriga para o ar,
de olhos postos no azul celeste, mas havia uma linda menina a correr todo o perímetro,
interagindo com todos os pequenos que encontrava, uma filhinha radiante,
afastando-se sempre de mim com o à vontade das pessoas inteiramente emancipadas.
Nem enquanto o Panda, o Avô Cantigas ou o Noddy,
o Serafim & Companhia ou as Docemania iam chegando,
animando e cantando as canções dela preferidas, e partindo,
nem então algo lhe parecia mais interessante que ir pelo relvado e afastar-se de mim
nessa aventura social própria de bebés e de pequeninos entre si, alheados do resto.
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De súbito, um Airbus da TAP passa bem rasante por cima do Estádio,
gerando em mim uma espécie frémito nostálgico e de desejo de voar,
de me desdobrar em quem nele voava e olhar para baixo, vendo-me ao mesmo tempo
no meio daquela multidão de pais com os seus filhos, entre sinais de festa notórios
e o Estádio ele-mesmo, na sua alvura beijando muito o azul
e os montes, corcovas de dragão, de Gondomar.
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Fim da manhã, era preciso regressar. Ó tempo bem passado, concordámos ambos!
Despedimo-nos. A criançada merece que lhe dêmos toda a festa e música possíveis.
E foi descendo a Constituição que reconstituí uma por uma as minhas emoções de pai
com a sua filha, ao lado de um amigo com as suas duas mais uma primita,
os seis misturados entre a demais criançada no Dragão.
Era preciso celebrar ter havido isto!
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Aumentei o volume. De vidos abertos, filha na cadeirinha de segurança,
a avenida crescia para mim, a música, ainda e sempre a minha belíssima gravação
Die Zauberflöte. Voltadno-me, de vez em quando sorria para ela e ela sorria para mim.
A música ardia-nos no coração. Foi quando, numa das paragens semafóricas,
em plena ária Der Hölle Rache bombando magnífica das boas colunas,
uma velhinha magra, sóbria, cheia de vivacidade e saúde, com ar de Missa em dia,
se me dirige, aproximando-se ligeiramente e inclinando-se,
ao mesmo tempo que atravessava paralelamente ao meu carro e no sentido inverso:
«Dou-lhe os meus parabéns por ouvir e assumir tão bela música!»
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Disse-o e sorriu-me muito enrubescida. Sorri-lhe também intenso, em pasmo,
e bati levemente no meu peito, palma bem aberta, sorrindo-lhe sempre,
enquanto arrancava, acenando e correspondendo afectuoso às suas palavras quentes.
Na verdade, estar alegre e aceitar para mim uma simplicidade feliz,
plena ali, com a minha filha ridente e a nossa música mágica enquanto regressávamos a casa,
tudo isso tornava-se cada vez mais uma nova resolução de vida.
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Porque se tornaram negros e venenosos os sentimentos negros cá dentro
e tão venenosas e negras as vinganças negras que se enroscavam no meu coração
contra quem me prejudicara recentemente,
que eu mesmo me assustei com o grau de paixão dedicada e fiel
que afinal pusera em tal trabalho no Pub por nove meses.
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Eu não poderia alojar indefinidamente tais sentimentos abissais, opostos à Luz,
desencadeados efectiva e inapelavelmente pelas circunstâncias vis
do meu despedimento do Pub mediante golpe tão orquestrado e malevolamente urdido.
Um patrão oportunista, subreptício, cuja palavra nada vale, atirava-me com a Rottweiler
armadilhada da sua amante brasileira intermitente, adiposófoba,
feroz, determinada a sujar-se de mentiras e pretextos contra mim.
E lá saía eu, posto fora, por ter retorquido, por me ter limitado a tentar conversar com ela,
sem obter o mínimo de respeito e correspondência porque o plano já estava gizado.
Todo o facto e toda a famigerada cena, sei-o agora,
fora, no contexto da minha vida presente,
apenas um Aviso Evenenado por uma benigna mudança:
sendo um mal, forcejava em mim uma alteração de rumo que me faria bem,
sendo um veneno fonte de ascos e ódios, só eu o poderia reverter agora em Antídoto
para e por uma nova vida, refrescando-me todo de Vida.
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Fora tudo injusto? Claramente!
Também descobri que o fuinha-mustelídeo-papalvo do meu patrão
tinha filado um substituto para mim havia tempos, alguém mais barato e mais flexível,
só não sabia ele como haveria de oportunisticizar a coisa,
substituto esse por ele namorado diariamente, no Café da esquina,
enquanto era servido do pequeno-almoço,
substituto finalmente cravado, mal me viu demitido, exonerado daquela felicidade,
a esse tal Café fronteiro ao Pub e que ele frequenta dia após dia.
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Trata-se de um Empregado de Mesa, pau para toda a obra,
que, dentro do ramo da hotelaria, tem experiência a servir, pôr e desfazer mesas,
fazer tostas, sandes, pregos, cachorros e agora vai estar ali,
aliás já lá trabalha desde o dia seguinte ao meu despedimento,
vai estar ali como eu estava: à porta, terá paciência e palma dos pés para isso?,
a receber as pessoas, a entregar-lhes e a retomar-lhes os cartões
prolongando o seu serviço até às cinco ou seis da manhã, como eu fazia.
E vai fazê-lo por menos cem ou duzentos euros que eu. Depois, provavelmente,
terá de ter ainda energia para conservar o seu emprego no mesmo Café e estar lá cedo
para um longo dia a servir cafés e refrigerantes do lado de fora do balcão.
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Informado por amigos, tive de ir ver quem era o meu substituto,
aproveitando uma viagem ao Porto para ultimar o meu Concurso Docente.
Era uma tarde de calor. Entrei nesse Café, àquela hora vazio,
de onde tantas e tantas vezes eu vira sair o meu ex-patrão, pois,
estando sem carro, telefonava-me, dizendo, numa impostura redundante:
«Querido [sic], preciso que me leves à Makro. Vamos fazer compras.»,
aquele Café amargava-me a alma! Se entrei, entrei dolorosamente.
Doeu-me encarar e compreender quem era esse meu substituto.
Mas fui ostensivo no meu olhar inquisitivo, desabrido mesmo.
Intimamente, não deixei de estabelecer um nexo entre esse Empregado e os namorados
que me substituíram e sucederam com uma ou duas namoradas que tive,
tendo em conta o quanto isso me doeu e me macerou de pensamento obsessivo,
e era ali novamente a reedição dessa gigantesca derrota aparente,
que é ser rejeitado e excluído sem apelo nem agravo, sem dó nem piedade.
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Estudei a figura. Observei o desenho dos seus movimentos
e vocalizos entre as muitas mesas vazias e as poucas que servia,
de repente a sua voz resplandeceu medíocre com umas explicações técnicas quaisquer
que teve de dar a um cliente desorientado perante a máquina de tabaco interior.
Do balcão, pediram-me que pedisse o que queria.
Disse que estava a pensar. Acabei por pedir um café.
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Tomei-o lentamente enquanto lentamente se dissipava o meu propósito insomne
de ali o abordar e envenenar com a ideia sincera e bem intencionada
de que ele fora contratado por um idiota para fazer mais que eu
e para ganhar menos que eu. Mas desisti da ideia de expor com desenhos os factos.
O melhor mesmo era deixar a história seguir o seu curso, alijar o meu rancor,
e deixar as acções vis entregues à vileza pegajosa
dos seus actores: a filha da puta da intermitente amante e patroa intermitente
com pretensões a cotas iguais no Pub. Pode ir sonhando!
O corno manso do meu ex-patrão, esse verme fantasiado de gente.
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Fora um Pub que servi com engulhos e relutâncias iniciais,
mas que afinal acabei por amar como a um vício que me alimentava de vida,
de literatura e de gente concreta com as suas histórias, e me permitia sofrer-me,
fundir-me e contrastar-me com o Mundo dolorido que ninguém quer ver ou reconhecer,
um Pub que afinal se transformara para mim numa rede rica e fecunda
de relações humanas bem intrincadas e bem complexas, relações
que a pouco e pouco fui entretecendo de abertura em abertura, de gesto em gesto,
enquanto eu mesmo, habituado ao Ensino, florescia entre cartões de consumo,
controlo e reposição de stoks de bebidas, garrafas vazias, aperitivos picantes,
o convívio habitual e a cooperação natural com os demais companheiros imigrantes.
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O facto de ter sido fonte de sofrimentos e angústias ou de ter ido a par
de um tempo de angústias e sofrimentos na minha vida não lhe retira efeito luminoso,
ensinante para mim e fecundador do meu projecto escrevente Palavrossavrvs Rex.
Pela paixão redobrada de alguns comentários aos meus textos,
comentários por vezes malévolos e com pretensões de interagir comigo
com jogos psicológicos de principiante, comentários revestidos de aparente bonomia,
mas intrusivos, injustos, eivados de uma cupidez e um interesse mal disfarçados,
compreendo a potência de ter escrito e ir escrevendo sobre essa minha fase e tal matéria.
A aventura do Pub parece, portanto, ter acabado, remanescendo ainda algumas narrativas
que a seu tempo exararei. Perdi o meu emprego, pronto! Não a memória dele.
Enquanto muitos se riam e gozavam, coisa muito humana, com a aspereza dos meus infortúnios,
eis que alastra agravada a realidade geral de desemprego e a absurdidade das dívidas acumuladas por tantas e tantas famílias. A procissão, infelizmente, ainda vai no Adro.
Perdi o meu local de trabalho, sou mais um, entre milhares,
que perde um lugar que amava e se lhe tornara vital.
O que é que há aqui para rir?
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Mas há, tem de haver!, mais vida para além de um local de trabalho que se me tornou feliz
e que alguém com poder e arbítrio para isso me veio extinguir covardolasmente!
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Perdido e desalentado, provava assim, em plena sede, o travo amargo da esperança.
Ao sair, encarei de imediato com o Rei da Rua, o célebre arrumador-pedinte Abel,
sobre quem algumas vezes escrevi e a sua ambiguidade ameaçadora, o seu número de mau.
Ele, que é o terror ali à Noite para quem tem um frágil Mercedes, um BMW ou um Bentley,
e é também o terror das senhoras da socialite e de quem lhe desse,
após estacionar com a sua supervisão e os seus «Venha! Venha. 'Tá bom!»,
menos que cinquenta cêntimos, logo arremessados violentamente ao chão.
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Assustados com o seu vozeirão ecoando pela rua e os maus modos,
quando vinha com a sua barba e mau hálito colar-se aos vidros que subiam,
tementes de retaliações à pintura,
vinham pedir-me a mim o favorzinho exibicionista de zelar pelos seus Bentleys,
pelos seus BMW e pelos seus Mercedes e o favorzinho extra
de apertar intimidatoriamente o pescoço ao pobre do Abel,
nada mais que um bom e eficiente actor incompreendido:
«Deite-me lá uns olhinhos ao meu Mercedes, se faz favor.
É o azul descapotável. O tipo está doido, qualquer dia... Fale lá com ele.»
E eu, sorrindo muito, por momentos saía do meu posto, parlamentava caridosamente
com o seboso e barbudo Abel lá ao fundo. Ele garantia-me: «Ó filhinho!...» e tal,
e eu regressava, tranquilo como partira, ao meu posto na Noite.
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Ao vê-lo, celebrei-o e ele celebrou-me. Aproximámo-nos, abraçámo-nos.
O Abel está melhor implantado no meu espírito e na minha memória
que muitos outros armadurados de fechamento e egoísmo de lés a lés nas suas almas,
ele a quem um dia ensaiei extorquir umas moedas e falhei por incompetência tal tentativa:
«Ó Abel, sabias que aquele filho da puta me despediu? Cabrão de merda!
Prometeu-me, deu-me a palavra sagrada de que nunca me faltaria com trabalho
e, sem que eu esperasse algum dia, zás, calou-se muito calado,
com a ajuda da vacóide da amante, deixou-a a vociferar uns pretextos contra mim
e agora é isto: "Tem paciência!" Rua!»
Disse-me que o camelo fazia tudo o que ela queria,
(treta!, fingia deixar fazer, confessou-mo muitas vezes a mim, manipulador é ele!)
e disse-me que o homem, pitosga como é, andava sempre com o carro rebocado pela polícia
porque o estacionava a trouxe-mouxe em rampas, enviesado sobre os passeios.
E disse-me que, se eu quisesse, tinha os contactos e a influência
sobre tudo quanto era patrão da Noite. Era só eu querer.
Que estava à minha disposição para o que eu precisasse.
Agradeci a disponibilidade e louvei-lhe a carteira de conhecimentos e clientes.
Ia pensar.
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Estava efectivamente imenso calor!
Despedimo-nos com a nossa secreta cumplicidade habitual calorosa.
Vi, num repente, o sítio desabrigado, uma arcada esconsa, onde dormia todo o ano,
sob o frio mais terrível, enroscado com aquela tonelada de cobertores sob os quais desaparecia.
Mas, já eu ia dez metros longe, descendo a rua, e ele chama-me, com aquela voz forte
que ainda deve vergastar a Noite ali, por toda a rua onde se aloja o Pub.
Mostrava intenção de entrar numa frutaria. Com um gesto estacionante,
convidava-me a aproximar-me e a entrar também.
Entrei, confuso. «Sim, o que há?» E fiquei pasmado quando me disse:
«Pede o que quiseres.» Ok, está bem. Escolhi. Com o ar mais entediado do Cosmos,
o Fruteiro-Merceeiro estendeu o braço e alcançou-me a garrafa da minha sede.
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E lá fui até à Baixa com a figura e a humanidade do Abel na minha mente,
competindo por literatura e solidariedade dentro do meu casulo de amargura ressentida,
e fui bebericando a frescura das águas Castelo-Limão que ele,
condoído de mim, todo paternal e acabadinho de fazer cinquenta anos,
fez questão de me oferecer!

Comments

Joaninha said…
Lindo, como sempre.

Não me esqueci de ti, estou em luta, mas está dificil. Não desisto.

Bjs
Pinus Erectus said…
A vida vivida, nua, crua, desarmante, sentida e apaixonante num blog. Amei. Como amo o amigo de sempre.
Tiago R Cardoso said…
Temos de tratar de mais um momento de convívio, tens de me relatar esses momentos pessoalmente.

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