SOU UM BICHO ESTÚPIDO

Falta-me qualquer coisa. De vez em quando passo longos dias sem tomar um café. É deliberado. Gosto imenso de café. Mas faço por não depender de nada, de nenhuma substância. Não custa. Decide-se e pronto. Passa o primeiro dia. Depois mais um, uma semana, duas. Porventura por isso mesmo uma certa agitação e alguma predisposição à histeria e a uma violenta aspereza, em certos momentos, se potencie em mim, mas nada disto tem a ver com a escrita nem nela se reflecte. Quero escrever, escrevo. Sinto, sei, vou. Quero combater pelo meu País, combato. É no resto. Dói certas horas de desarmonia, em que nada parece funcionar devidamente, em que a linguagem dos afectos se depara com muros, incompreensões, agastamentos, que ontem dir-se-iam impossíveis, improváveis. Sou um bicho estúpido. Basta um floco de falhanço, a falta de um recurso, qualquer coisa fora do sítio no meu dia e perco-me um pouco. Estou a maior parte do tempo em casa. A maior parte do tempo de luz só, consigo cortar e contar todos os silêncios pela minha janela, o trinar das aves, o ladrar dos cães. Correr ao vento, na direcção do Sol e do Mar, isso, sim, resgata-me, limpa-me, baptizo-me sempre na límpida e densa água marinha, digo para mim mesmo: «Nada me falta, Vós estais comigo». Por isso morro um pouco quando me dizem: «Agora não vás.» ou «Já foste. Fica.» Quero ficar e quero ir. E instalo-me no labirinto de dois desejos.

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