JANGADA DE PODRE
Já Pessoa se lamentava,
sem se lamentar de todo,
do seu excesso de lucidez,
do seu extremo de sensibilidade racional,
olhando para o barco encalhado do século
e da própria vida púrpura.
Fácil lhe era desenhar a depressão e o vazio num dia de bom humor.
Era-lhe simpático hamletizar a palavra,
ser o Louco
e ao mesmo tempo o Espectro,
ser Lear e Gloucester,
o verme e o místico
no palco oco da alma alada.
Quanto ao poeta,
a década e o século são sempre póstumos
porque aquele já os resumiu,
já os viveu,
já os antecipou.
Podemos acusá-lo de tudo, menos do armistício perante o podre,
porque o toca e autopsia,
menos de tréguas dadas à noção de si mesmo,
corroído de ânsias,
e à de tudo em volta
corrompido,
menos do desencarquilhamento coronário,
enovelado e reenovelado por e para dentro.
O século tem podre!
Fazem escola os padres de pedra na sua quadratura cruel afiada,
que não amam os homens para além das missas,
nem as pessoas para além das ficções comunitárias,
grassam os políticos de pedra e os pétreos chefes
que vêem o povo
como gente-artigo com defeito
ao sair da fábrica,
gente lançada a bons preços
na grande feira enlameada e desprotegida da Nação,
onde ciganos enrouquecem pregões no ar frio da manhã
e crianças romenas colam o corpo a transeuntes em movimento,
num implorativo, insistente, querer euros por adesivos.
Já Pessoa lambia a solidão como uma morfina
que, chegada aos quarenta, aguarda pelos cinquenta
para que o cio seja todo aguardente!
E que bem se enfurece a pena com a fúria ébria daquela!
Entretanto, boiando, o País apodrece de decadência em decadência,
o lapso e a indecência contaminam-no de negro
e de vazio.
Sócrates, pugilista em campanha.
Cavaco, afónico árbitro.
Gama, bandeira no mastro.
Com mulher, Pessoa talvez nunca viesse a ser hepático-suicidário,
hepático-insuficiente, nem ascítico, e muito menos
paracentésico de contidas águas mortas,
prenhe de um finar-se próximo.
Sem mulher, é agora esta estéril glória morta,
judeu triste que de contraditório nos vivifica verso a verso.
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