DESPORREIRIZAÇÃO ACELERADA DO PÁ
Ok, concedamos que nem toda a gente anda no seu perfeito juízo,
que andar teso o tempo todo pode fazer um mal tremendo aos miolos dos portugueses,
que viajar demasiado na maionese ou de avião talvez desconstrua os neurónios
e reposicione a massa cinzenta de muita gente, diminuindo-lhe o equilíbrio.
lkj
Concedamos que a conflitualidade instalada na sociedade portuguesa é mau sinal,
mas imparável e inevitável, e que esta nova crispação, esta bebedeira de cansaços,
de desesperos infinitos, impensáveis, mesmo para quem se pensava a salvo de tragédias,
de despedimentos, de falências e de todas as formas e feitios de desgraça
não é, claramente, boa conselheira. Concedamos.
Porém, admitamos também que este guitarrista reformado da vida activa de formiguinha laboriosa emigrante, que tenho diante de mim e é cliente do Pub, lá sabe do que fala:
«Na próxima segunda-feira, tenho de ir ao Fisco justificar uma aplicação
de duzentos mil euros. Sabe como é que a vou justificar?
Vou justificá-la na puta que os pariu. Foi um dinheiro suado na emigração,
ganho fora deste País, aplicação que eu até estou a pôr cá. Cabrões!»
lkj
Se este guitarrista reformado da emigração na Suíça, que tenho diante de mim,
de repente coincide comigo, ao primeiro olhar e às primeiras palavras trocadas,
numa sintonia diagnóstica disto absolutamente cristalina;
se desata a dizer-me, de olhos muito arregalados e a brilhar muito,
tal como lhe reluz o seu bigode grisalho do azeite dos tremoços com azeitonas,
que Álvaro Cunhal já avisara sobre o outro lado do Betão Cavaquiano, o lado negro,
ou seja, a miséria presente, a fome que chegou e vai ficar;
se me diz que se sente perseguido por causa destas verdades
que tem andado a pregar no Deserto por todo lado, na Pátria da Língua, pela Diáspora,
verdades da tragédia portuguesa em que ninguém desatentamente ousa pensar,
e se admiravelmente me diz que o Povo Português está encurralado,
entalado por todos os lados, porque em Portugal tudo é Cartel
e é fartar-vilanagem por isso mesmo
na hora de assaltar os bolsos de todas as pessoas
cada vez mais idosas e mais desprevenidas,
Povo entalado de Refém, entalado de Impotência mesmo,
entalado no preço da luz,
entalado no preço da água,
entalado no preço do gás,
entalado no preço do pão,
entalado no preço dos combustíveis,
no crédito sem futuro para a compra de casa pelo qual se passa fome
pelas indevidas indexações à Taxa filha da puta Euribor,
uma invenção muito portuguesa e bem maligna para foder infinitamente as pessoas,
e em Portugal ter casa é empresa que sempre malogra
e tarde ou cedo desgraça oitenta por cento da população autóctone,
que acaba a viver com o papá ou a mamã ou com ambos,
um Povo entalado na desactivação paulatina da Indústria,
ou atirado ao desemprego pela sua obsolescência,
um Povo entalado na fatalidade da baixa produção
e na falácia do bem-estar inexistente porque decrescente e cadente e evaporescente,
entalado na transformação do País num país de Bens e Serviços,
entalado no excesso de estradas para cada vez menos automóveis
e cada vez mais pesadas e esdrúxulas portagens,
entalado na fome que cresce,
no dinheiro que falta,
na miséria que aumenta,
no Fisco que oprime, humilha e persegue, com aqueles processos e aquelas cartas sonsas
a envegonhar-nos de penhoras cabras enviadas para onde já não trabalhámos há anos,
Fisco que nos oprime, nos humilha e nos persegue,
a nós, que já há imenso tempo não podemos levantar-nos,
entalados na injustiça que Grassa e Carraça toda a gente,
se tudo o homem me vem listar tudo isso,
eu pergunto-me se há algum defeito de perspectiva no guitarrista que tenho diante de mim,
um homem que tem sessenta e tal anos,
que viaja por todo o mundo da emigração portuguesa, Austrália, Turquia, Japão,
que só vê o Povo alheado do importante dentro e fora de portas
a falar de merdas sem importância absolutamente nenhuma,
a tatuagem parola no ventre do Figo logo por cima da sua bexiga e banha natural,
as cuecas de lycra do Ronaldo,
gente que não pega num livro,
que não lê um jornal,
que não reflecte nos motivos por que a enrabam nem a eles reage caso os detecte,
gente que é de uma aselhice proverbial, incurável, jumentícia,
a encher aviões de estupidez e ridícula grunhice,
no apoio às tretas gloriosas de ar e vento da bola que lhe vendem,
a empurra autocarros de asnos,
a viver para dar o penso ao BMW ou ao Audi, a passar fome por causa de um automóvel,
gente que encolhe os ombros, enquanto a Pátria está a saque,
retalhada aos bocados: uma parte para os Soares,
outra parte para os Champalimaud, outra para o Jardim Gonçalves,
outra para os Cavaco Silva,
outra para a Maçonaria, outra para Américo Amorim,
outra para Belmiro de Azevedo,
e merda para o Povo, merda e tretas para as pessoas,
vida à rasca para muitos e por muitos e bons anos, bem podem desunhar-se,
se o guitarrista me diz tudo isto,
não pode estar inteiramente bem nem inteiramente mal!
Está simplesmente Além toda a gente a dormir.
lkj
Há, portanto, que concluir que a Guerra do Ultramar não danificou as cablagens
ao guitarrista, que ter trabalhado cinquenta horas durante trinta e cinco anos na Suíça
não lhe danificou a lucidez e a sanidade mínima de guitarrista
e que ser guitarrista e em colóquios e palestas activista denunciador de esta merda
que está consumada e nos tinge de vergonha,
porque escrita a castelhano, a francês, a inglês,
relatórios que nos estigmatizam de Fracasso e de Fraude Monstruosa:
Portugal é um exemplo de Nojeira Social, de retrocesso galopante,
de obediência acéfala a Bruxelas, de péssima negociação dos dossiês comunitários,
de má Gestão de recursos humanos, de Desperdício de Fundos Comunitários,
de desprezo deliberado pelas pessoas, pelos cidadãos, pela Nação,
é, afinal, sinal de suficiente sanidade e boa ou excelente forma.
lkj
Por isso, é com grande alegria e convicção que me conclui o seu discurso afiado:
«Eu aqui, neste País, sou da classe média-alta,
mas quando estou lá fora, em Espanha, França ou qualquer outra Europa,
sinto-me pequenino, miserável.»
lkj
Esta desporreirização do pá vai imparável porque a nudez-de-rei
da classe política com acesso à governação há mais de um quarto de século
alastra aos olhos de todos como a mancha-nódoa de óleo
prolongada e imperdoável traição às nossas gentes, classe política lesa-Nação!
Em suma, PS e PSD foram e são uma só coisa nefasta para todos!
Estão dispensados de reincidir!
Comments
É verdade...isto vai mal!
Sabes que mais? Vou fazendo o melhor que posso, tento não cair no ridiculo, tento agir de acordo com a minha consciência, tento seguir o meu instinto...
De facto está muita coisa mal, mas eu considero que existem coisas boas e essas tu também as sabes encontrar...concerteza na pureza do olhar do teu filho (por exemplo).
É nas pequenas coisas que tento reunir forças (pequenas=grandes).
Vivo com os papás...a vida tem proporcionado, sinto-me bem...sinto-me melhor do que na miséria, sem uma mão que me ajude.
Considero a mão deles, uma ponte para a minha tão desejada independência.
Vamos lutanto, cada um à sua maneira pelo nosso lugar ao sol.
beijo