JOCIARA, A SEQUESTRADA
Sob um conjunto de olhares mais que reprovativos, vertidos como ácido
oblíquo sobre a figura excêntrica da prostituta de alterne Jociara,
afinal sempre só, numa solidão de ostracismo feita, muralha de exclusão,
vestida a rosa pomposo, saia de folhos rosa, os ombros nus, o sorriso triste,
novamente fui um seu atento e solícito ouvinte. Aproximei-me e perguntei
pelo seu divórcio. Disse-me que estava em bom caminho.
E nunca mais parou de narrar-se.
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Desfiou-me, como das outras vezes, a história da sua vida acrescentando ao puzzle
outras informações que vão completando um quadro natural de gente de carne e osso
mas sem a linearidade dúbia da gente de bem
cujos estímulos e pretextos para serem do mal e do piorio
nunca estão demasiado longe, nunca estão à desamão, como talvez se pense.
A morte prematura da mãe aos trinta e cinco anos, de ataque cardíaco,
deserdada por causa da ligação a um homem pobre com quem casou à revelia,
a odiosa avó noventina e imortal, portuguesa do café, das jóias, do infinito dinheiro:
«A puta da velha nunca mais morre para ter o castigo que merece
pelo desgosto que causou à minha mamãe.»
uma das idosas de uma das famílias mais ricas do estado brasileiro de onde provém,
e o seu recente sequestro, com violação, furto de jóias e outros bens à mistura,
eis o conjunto de tópicos que a recobrem autobiograficamente:
«No dia em que a velha nojenta morrer, velha maldita!,
vou fazer uma festa, vou tomar um porre.»
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O Pub não é para mim fonte de tortura pelo florescimento de instintos decadentes e negativos.
O que porventura me negativiza e instila revolta, por vezes, é tardar em ser pago
e é sentir a pressão da necessidade, tudo aliado ao notório e ostentatório alheamento
social por parte de la crème de la crème da alta sociedade da Invicta,
essa, sim, muito falhenta de sensibilidade,
por vezes insuportavelmente altiva e despreziva, é a mais pura verdade!,
dos que socialmente vê por baixo, ao lado, bem à mercê da sola dos seus pés.
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É o caso de um velho putanheiro a quem, por lapso, por uma única vez,
dirigi uma palavra desalinhada de acolhimento enquanto lhe entregava o cartão:
«Olá, boa noite, desde ontem.» Passa o velho. Passa a amante sempre sorridente.
Saíu-me. Arrependi-me porque o velho vem sozinho ao Pub numa noite,
dança com A, dança com B, abandona o Pub com C e, depois, na noite seguinte,
afinal vem com Y, dança a noite inteira com Y, Y, dançarina loura exuberante, feliz,
parece ser então o sol eclipsador de todas as demais Letras do velho.
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A brincar, a brincar, Y é somente a Amante Alfa do velho dentro
da complexa gestão do amor, da hierarquia e da fidelidade nestas coisas muito dele.
Portanto, denunciar o «desde ontem» poderia até comprometer a paz da ligação do velho à Y.
«Então que foi aquilo, 'desde ontem'...?» Veio depois a sós discreto repreender-me.
Atalhei-lhe o sermão. Compreendi o inconveniente. Reconheci que fora um erro,
que percebera de imediato o meu engano. Desculpas e não voltaria a suceder.
Calou. Sorriu. Reentrou. Não fora grave. Tudo lhe estava sob o mais estrito controlo.
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Este velho, rígido enquanto dança, tem traços dos meus antepassados,
os olhos claros, a testa alta, ampla, o cabelo ondulado do meu avô paterno,
lembra-mo muito, com o seu cabelo ruivo nórdico mas ao mesmo tempo morfologicamente áfrico,
lembra-me os imensos irmãos do meu avô, traços iguais,
completos paradoxos genéticos e síntese de contrários, após séculos de Morgadio.
Mas, até ver, este homem, que é obviamente muito rico e obviamente muito rijo,
é um seco, um espírito Fidalgo de Auto vicentino.
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A prová-lo, há largos meses, numa noite de maus fígados,
talvez bebido e ainda mais insuflado da mania de se pensar gente mais que os demais,
quisera pagar a parca despesa com uma gorda nota de quinhentos euros,
ali estivera, ao balcão, especado, impaciente, antipático,
a flanar com ela, a rubra nota de quinhentos euros, como uma bandeirinha de estatuto,
rei ostensivo do ter dinheiro. E, já lá vão meses, nunca por nunca uma moeda de vinte cêntimos
soube ser capaz de me deixar na mão, cá ao Licenciado e Pós-Graduado das Faculdades,
cá ao exilado da Educação, cá ao sobrevivente na borrasca devastadora
da PseudoReforma do Ensino que me desmobiliza a fé e me desmoraliza e me inutiliza
as competências adquiridas, as qualidades pedagógicas naturais,
e me inutiliza a experiência sedimentada e a boa-fé na tarefa educativa.
Pois não é o único que assim procede.
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Gente ali há que tem fortunas colossais, centenas de milhares de euros a fermentar-lhes
nos bolsos, o poder de jogar e brincar com os Bancos
sempre de joelhos por que permaneçam aqueles com as suas imprescidíveis contas,
euros de que nunca fruirão nesta vida, e no entanto sem quaisquer gestitos generosos,
depois de meses de sorrisos de acolhimento e palavras amistosas trocadas,
depois de tanto tempo a verem-me ali, de pé, numa crucificação da paciência,
penando Noite após Noite, observando-os, cilada do meu olhar escrevente,
estudando-os, emboscada do meu espírito escrevente. Nem um só gesto,
vinagre embebido em esponja que me anestesie da Pena. Nada!
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Ora, Jociara, no meio de tudo isto e de todos estes, pelo menos graceja a sua vida
e tem motivos para mofar de todo este elitismo da treta que pára no Pub.
Puta batida,
conhece bem a clientela cara que a presenteia com jóias,
com bebidas caras e outras dádivas, toda a espécie de presentes caros,
sinais de gratidão por pele na pele, por explosivo esperma em dói sustenido
impossível de sustener, adentro a artística boca dela, que sabe requintar o dar-se,
dela, que regurgita o álcool do alterne, mas também todos os espermas chiques,
dela, que se limpa deles no cu-ânus sindical, na cona laboral.
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Matéria de jornais e de rigorosa investigação polícial
foi o seu rapto. Um evento aflitivo de seis horas, contou-me.
Desde a arma subitamente apontada na rua,
a entrada forçada no carro raptor, o embrenharem-se no matagal,
a arma apontada à cabeça, engatilhada já,
depois o roubo do ouro e jóias que tinha sobre o corpo,
depois a negociação inspirada e salvadora com que, pensando perto a morte,
convenceu o raptor de outros, muitos outros bens, que tinha em casa.
Depois a viagem até à cidade e a esperança que teve
de encontrar um só polícia que fosse nas ruas e, grande azar, nem um.
Depois, a entrada em casa, a violação a pleno gás,
depois as unhas com que se defendeu, que lhe cravou no rosto e lacerou as costas.
Depois o quanto lhe resistiu, resistindo,
unhando e rasgando, chutando e pisando, gemendo e gritando.
Depois a penetração que lhe rompe a resistência.
Depois a frescura do esperma agreste a inundá-la,
aquela corrida que se detém tão cedo da cavalgada iniciada, refolegante,
depois uma aflição que se acalma.
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Depois os vestígios, as dedadas, as impressões por ela nele deixadas.
que ulteriormente a Polícia Técnica utilizou com proveito da Acusação.
O sequestrador está preso. Ao trauma revive-o continuamente.
Jociara termina o cigarro. Volta para dentro.
Dança só. Encontra alguém que a reconhece.
Dançam. Nada lhe agrada. Ninguém a preenche.
Nada a contenta, a ela e ao seu sorriso triste e cabisbaixo.
Volta para fora e desabafa-me de raspão:
«Às vezes encontramos gente que não queremos encontrar!»
Chama o táxi de sempre. Parte disparada.
Jociara é o segredo ubíquo da Vida-Limbo, tão ubíquo como a Noite.
E evola-se tão sem perfume, tão sem ruído, como se não fosse ninguém:
apenas o espectro flutuante de uma Dor que sorri.
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como ficamos? damos o salto ou ficamos na escrita-limbo?
morremos?