O ESCORADOR DE PAREDES


Ah, a prostituição masculina e juvenil! A prostituição juvenil e masculina!
Será que os políticos medíocres que nos pastoreiam querem mesmo saber
de esta espécie de monumento humano eloquente à indiferença social,
que são os moços que se oferecem como aperitivos nas esquinas do Porto,
esses que escoram paredes camuflados no granito, sob as arcadas?
lkj
Se em nada, Nada!, nos respeitam esses políticos medíocres e alheados da rua e de nós,
comuns cidadãos, como hão-de respeitar
todo e qualquer português confrangedoramente à margem?
Há um moço alto, loiro, muito educado, que, de todas as vezes já bêbado,
por isso gago e entaramelado,
mas sempre extraordinariamente correcto, me pede entrada no Pub,
já a Noite dobra a esquina e, combalidos, os clientes vão saindo dois a dois ou um a um
abandonando aquele mormaço de suor e sono.
lkj
Ele traz um ar sinceramente mártir, solitário, marcado, sofrido,
inexpressivo, numa aparência entre o serial killer e o frade de clausura, descarnado,
tem sempre dinheiro para gastar em inúmeros whiskys e Luso
até que as luzes exteriores se apaguem e as interiores se acendam,
as limpezas comecem e, enfim, cheire a outra labuta-lixívia e Pronto por todo o Pub.
lkj
Depreciativamente, Patrão e todos os que ali comigo trabalham me perguntam,
quando o rapaz desaparece da área, ou porque foi ao WC ou porque veio fumar ao exterior:
«E o veado, já foi?» Ou então: «Então deixaste entrar o mariconso bebedolas outra vez?»
lkj
Foram estas palavras, acesas um dia no óleo do desdém desumano
com que tantas vezes nos apodamos uns aos outros, que uma e outra vez
me fizeram reparar nesse aspecto caracterizador do moço em que nunca pensara.
Aspecto sempre putativo e só mais evidente hoje porque,
concluída a Noite, dado o facto de estar ele extraordinariamente ébrio,
mas, como sempre, nada negativamente exuberante nem para com ninguém inconveniente,
apenas trôpego e profundamente desarticulado ao movimentar-se,
ousou pedir-me algo, andava eu atarefado de um lado para o outro,
ultimando os restos do meu serviço: «Olha, podes... podes... fazer-me um favor?
Eu pago. Davas-me boleia... É aqui perto...
Praça Carlos Alberto... ou pode ser... no Palácio da Justiça... Eu pago.»
lkj
Disse-lhe que sim, que podia ser, mas que teria de esperar que eu concluísse o serviço,
o que levaria uma hora ou um pouco mais. Exalava impaciência. Resolvera esperar.
Estranhei que, ao contrário das outras vezes, não optasse pelo santo táxi, cuja despesa
nunca lhe seria nada de especial. Estranhei a proposta e a confiança colocada em mim,
ab nihilo, um estranho, apenas de todas as vezes compassivo e benévolo com ele
por causa da sua via-sacra alcoólica useira e vezeira
e por causa do lastro de notório abandono às garras passentas
de essas gayssaunas aleatórias e paredes citadinas por si escoradas,
aguardando qualquer amante ou nenhum.
E é ele todo um enxame de outros iguais nada discreto nessa negra faina.
lkj
Retomei os meus afazeres. E imaginei que, por mais boa vontade que eu tivesse
e solidariedade e compaixão e humanidade, nesta sua milésima hora ébria,
teria no fundo de me arriscar a aturar um rapaz
que lá terá as suas opções sexuais diversas das minhas mas que, por estar bêbado,
talvez se me colasse indesejavelmente ao banco do passageiro,
mal eu dissesse: «Bom, parece que chegámos!»,
e, lasso, pesado, me fizesse avanços e quisesse beijar, argh,
e tivesse avanços gays sobre mim,
e me retivesse do meu caminho em direcção a casa um penoso minuto que fosse
e se atirasse a dizer-me o quanto sou bom e lindo,
e como lhe sou uma fonte inesgotável de tesão homo-erótico,
e me atrasasse do meu descanso urgentíssimo,
e me empatasse o regresso à pele macia e entontecedora da minha mulher dormindo nua.
lkj
Irra, era o que mais me faltava! Tantas horas de pé, tanto aperto de mãos e sorrisos
à clientela que chega e que parte, os mesmos de sempre,
e ainda ter de fazer de Anjo da Guarda a este Álcool EnGayscecido!?
Mas, enfim, tudo isto era a minha imaginação e o meu heterobrio homorrepulsivo.
Tudo isto era a minha cabeça a ser convencional. E eu tinha de ser mais forte que o sofisma.
Decidi que deveria purificar a minha mente, ajudar o pobre rapaz com naturalidade
e de nada me enojar. Imaginar de mais era um músculo que deveria permanecer flácido.
lkj
E assim, concluído o serviço, ainda desabafei ao meu patrão:
«Bom, já vou. Está ali o cliente retardatário. Está sentado. Pediu-me o favor de uma boleia.
E é perto. Disse até que me pagava, vê lá tu!»
O homem da massa não teve outras palavras: «O quê?, vais dar boleia ao veado?»
Já contava com o comentário jocoso e com o ferrete classificador.
«Não penso que dar-lhe boleia me contamine de gaytude, ó patrãozolas.
Está ali que mais parece uma garrafa cheia de etílico para feridas.»
Despedi-me e preparei-me para a dubitativa tarefa. Saí.
lkj
Mas o jovem já ali não estava. Ao fundo da rua, andava de um lado para o outro, lá longe.
Compreendi que mudara de ideias. Estava impaciente, no limiar do coma alcoólico,
talvez disso amedrontado, e cambaleava rua acima e rua abaixo. Reentrei no Pub.
«Bom, afinal, parece que o famigerado jovem homo-alcoólico mudou de ideias.»
lkj
E voltei a sair.
Já perto do meu carro, para onde quer que olhasse em mais lado nenhum o detectava.
Certamente, resolvera apanhar o santo táxi, num acesso de razoabilidade.
E porque me fizera pronto para respirar fundo
e para cumprir o que o jovem me pedira, recriminei-me.
Recriminei-me por não ter sido imediatamente solícito.
Pesou-me não poder ter sido afinal herói e Cirineu de mais este Cristo.
Fazer o bem. Concretizar um auxílio que me fora pedido.
Aceitar que me pagasse porque me faz imensa falta, qualquer cêntimo é bem-vindo:
no Pub, os mais ricos são os que menos se esmeram nas gorjas
quando regressam aos seus BMW caríssimos ou aos seus luxuosos Descapotáveis
os quais lambem devotados como se fossem Pénis de Deuses.
Na verdade, passam por mim como se eu fosse mais um tapete
no caminho para essas divindades motorizadas, divos estofos, divas jantes, divo ronronar.
lkj
Entrei no meu carro, sintonizei a Rádio Nova Era pela música mesmo.
A Rádio Renascênça é, o mais das vezes, demasiado superficial,
contida-conveniente-governamental.
Senti o cheiro da cadeirinha da minha filhinha lá atrás, como uma Essência Santa.
Azulamanhecia. O ar rescendia àquela herbal frescura perfeita e à liberdade pós-laboral.
A passarada na Cidade era um Enorme Concerto Opus Cagaçal.
«Que alívio, meu Deus! Doem-me as pernas de tantas horas hirto,
erecto e atento, como uma sentinela, acolhendo, observando, compreendendo.
A planta dos pés parece ter-se-me colado aos ossos. E doem-me.»
ljlkj
Com efeito, como sempre, eis-me Exausto e Mal-Pago!

Comments

Anonymous said…
Belo texto, parabéns! É muito complicado quando vivemos numa sociedade egoísta, em que olharmos por nós já se tornou uma questão de sobrevivência. O papel do Estado fica relegado para segundo plano, ele é inócuo, incompreensível, intratável, vazio de conteúdo, e sobretudo anti humanista. Os flagelos a sociedade existem, são bem reais, porem, essa mesma sociedade tem de se curar a ela própria, pois vivemos num país órfão de Estado, e infelizmente de democracia duvidosa.
Tiago R Cardoso said…
fantástico, joshua simplesmente fantástico...

Sei que deveria agora dissertar sobre o assunto, mas quando lemos um bom livro não o comentamos nem aplaudimos, apenas nos sentimos bem e absorvemos a sua beleza...
Joaninha said…
Josh,

tens de me prometer que um dia juntas todos estes teus pedacinhos de vida e públicas num livro, é que são realmente divinas...Não quero insistir sei que o Tirano é sensivel a este assunto, mas são boas de mais para ficarem por públicar
Anonymous said…
Joshua, tu manda-me estes opúsculos para um jornal ... a ver se te publicam em jeito de crónica, por exemplo ...
Tens gabarito e charme na escrita, limas alguns pormenores e estás um mestre!
Estava eu a ler e a pensar...

Que realidade descrita tão distante de mim...quando tudo isso acontece estou a dormir no silêncio da noite.

De facto...é triste...sempre achei triste a noite a partir de determinadas horas. Gosto da noite no Verão, quando depois de um dia de praia visto um vestido e calço umas sobrinas e estou numa esplanada junto ao rio onde se reflecte a luz dos candeeiros...

No entanto quando as ruas ficam desertas tenho vontade de fugir...não gosto essas horas...é muito triste...encontram-se perdidos ....muitos...enfim...

Deve ser super desgastante trabalhar à noite.

Volto a fazer o apelo:

http://www.tonymadureira.blogspot.com/

Uma tia minha tem lupus. Que tens com isso? Podes perguntar tu. Uma palavra nestes momentos ajuda mais que muito. estou a avisar tout le monde porque ninguém passa lá.

beijo
Joaninha said…
Esqueci-me de perguntar, porquê a joaninha?
è muito gira a imagem!
joshua said…
Olá, Joaninha!

Esta/aquela joaninha do meu texto, como todas as imagens que selecciono para dialogar com os meus textos, motivá-los e marcá-los, foi deliberada, foi intencional.

Cumpre um papel de contraste irónico e tragicómico com o tipo de personagem que nesse texto evoco, o prostituto, escravo de uma procura masculina e o gay, ainda que equivocado ou controveso ou revolvido gay: imagem esvoaçante e delicada, afemeada e máscula, macro e minúscula, minúscula uma vez que de tanto ninguém a querer ver e assumir dentro de um mundo bem amplo e bem lato como que desaparece do ângulo de observação de todos.

E afinal, concordarás comigo, o insecto às pintas afinal é uma partida apalhaçada e engayscecida da Natureza e é claramente uma forma peculiar de trajar Natural que um bom travesti, uma dragqueen, subespécies artísticas da espécie e forma de ser humano de que estamos a falar, talvez assumissem.

Enfim, na escolha da imagem pensei também em ti, no quanto te interrogarias por ter escolhido esta/aquela joaninha e de como até essa possibilidade de interrogação, puzzle e enigma, tudo isso, enfim, faria e faz parte do jogo dos múltiplos sentidos densos que escrever da vida e i.ma.gi.ná-la há-de representar para quem ama a literatura.

PALAVROSSAVRVS REX

Popular Posts