MEMÓRIA DE MAMUTE


Dificilmente poderei descrever a sensação tenebrosa que às vezes me assalta
após mais uma noite de trabalho no Pub portuense onde peno e sou doutorando
no pior e no melhor da Espécie Humana.
Uma sensação de chumbo, penosa, pastosa, dolente,
que consigo sublimar de de todo me arrastar para um poço fundo
com um certo tipo de sorriso triste que agora, perto dos quarenta,
dou por mim a esboçar frequentemente, cansado-virgem da puta da vida.
Sensação Tenebrosa por causa da insensibilidade, do desprezo mesmo,
vertido por essa espécie de espécimes egoístas a que pertencemos,
tão crassa, tão homicida.
lkj
Na verdade, sorrio acolhedor e aperto as mãos às elites portuenses e das cidades próximas
e o que nelas vejo, salvo pontualíssimas excepções, é mau de mais
e caracterizador de um Portugal moribundo, decadente, egocêntrico,
fechado à realidade pessoal e social envolvente,
vivendo na sua Torre de Marfim, tentando preservar-se do vendaval insustentável
que as convulsões em brisa já anunciam iminentes e que a poucos deixará incólumes.
Elites incapazes de pontificar sinais de atenção e de deferência para com quem,
sofrendo muito, precariamente trabalha e perenemente amarga.
lkj
Tenho sido, fez-mo a vida!, muito sôfrego em matéria de dinheiro. Coisas de um pai.
Coisas de um qualquer bom pai.
Ironicamente, quanto mais necessidade dele tenho para suprir necessidades básicas
e pela minha dignidade mínima, menos tenho, mais me falta,
menos me paga em bom tempo quem me emprega,
menos me supre essa falta quem, segundo a lei, deveria suprir-me a essa falta.
Entrei numa espiral de exploração obviamente do lado do explorado.
Não sinto nada de acalentador em ninguém.
Ninguém vela por ninguém. Ninguém ajuda ninguém. Tempo de Mãos Fechadas,
Enclavinhadas em Garra Adunca porque já não há Céu e o Inferno é ser-se desfavorecido.
Ninguém dá nada a ninguém. Estou muito longe do mundo do Eduardo Pitta,
crónicas da Boa Mesa e da Boa Cama são-me impensáveis.
Raciocinar de esse ponto de vista parece-me quase sacrílego, no entanto altaneiro e atraente.
O Factor Latrina em tudo na vida até me parece um pensamento agradável
e faz-me muita falta na caixa de comentários do meu PALAVROSSAVRVS REX,
porque ser aterro sanitário da merda mental alheia é um medicamento para o orgulho.
lkj
Sim, sou explorado. Sou explorado soezmente.
Mas se é verdade que o meu patrão me paga pouco de cada vez
e muito dilatado no tempo, a verdade também é que, em parte, é porque não pode,
é porque tem as suas prioridades pesadas, aluguer, trespasse, mercadorias, salários,
e que, à sua escala de patrão, anda sempre fodido e teso, apoiando-se nas minhas costas,
e nas dos meus colegas imigrantes sul-americanos,
sempre e em tudo obedientes, poupadíssimos, pacientíssimos,
enquanto burros de carga, todos nós, à espera de migalhas sempre esparsas e sempre tardias,
e fá-lo ele assim para poder cumprir lentamente com elas, as suas magnas prioridades.
Em parte! Porque a outra parte é que, na sua bonomia,
se trata mesmo de um simpático sovina oportunista que quer sobreviver e prosperar à sua escala.
Também ele quer ser rico rápido e em força.
lkj
Toda a vida habitei numa certa preservação do mundo
em que os ideais altruístas e uma certa noção de ser bom
me foram mais gente e mais reais que as pessoas propriamente ditas na sua essência.
Conheci muitas, mas sempre poucas. Interagi com imensas, mas sempre insuficientes
para ter uma noção, precoce e cravada em faca, da dimensão filha da puta
do que é a espécie humana, quando lhe é dado usar o calcanhar-tacão
para esmagar a traqueia de quem está por baixo apenas debatendo-se para sobreviver.
Estou por baixo. Sinto-me esmagado. Precisa e duradouramente esmagado.
Durante algum tempo, escolhi um caminho que me parecera o melhor e o mais rápido
para me livrar do influxo das lógicas exploradoras do meu suor na Escola Pública,
Zoológico de Estupidez e de Absurdo Burocrático, onde nada faz sentido
e é preciso que menos sentido faça até que a voz se nos enrouque e apague,
para aliviarmos por desistência e desânimo
o Orçamento de Estado,
e se enrouque e apague a nossa voz como a da colega Agustinha,
professora de Matemática, cujos berros e ameaças viris aos alunos temebundos
lhe permitiam aparentar controlo de turmas ao mesmo tempo que o acumular pólipos
em competência técnica nas cordas vocais.
Mas o meu suor explorado não tem por onde escapar. Não há saída.
Só crescer António Lobo Antunes e florescer Saramago me poderá permitir Êxodo Disto.
A Tecnologia dos Sistemas omniscientificou a Sorte, subtraindo-a inteiramente,
e por isso mesmo só ministra a miséria pelo dolo.
Apostar no EuroMilhões ou em equiparados, tal como estão, deveria ser declarado Crime
assim como crime é existirem neste molde passível de tratamento hiperinformático.
Era um caminho crivado de Mentira. Vi que a Mentira revestia todas as coisas.
Toda a nossa sociedade assenta em Mentiras Guardadas a sete chaves
e nem sombra de Verdade.
As Mentiras são o que vende mais, o maior engodo de um povo embrutecido,
é justamente aquilo em que mais se acredita.
lkj
E até eu, com todo o meu altruísmo e generosidade passadas, testadas e acreditadas,
sucumbira ao Império e à influência pedagógica da Mentira até que, sofrendo muito,
finalmenrte a admitisse e autopsiasse em mim para sair mais forte do processo
lkj
As Estruturas de Mentira que um certo marxismo no mundo livre
apesar de tudo contrabalançou e contrariou criativamente
ao longo de boa parte do Século XX, pense-se nas reflexões de um Roger Garaudy,
por exemplo, estão hoje afinal no Apogeu do seu Poder, devorando,
como Praga de Gafanhotos, não apenas os recursos do Planeta
o equilíbrio de todos os equilíbrios,
mas até, uma a uma, as almas e aspirações legítimas dos pobres dos pobres,
dos esfomeados dos esfomeados,
dos arredados dos arredados, dos privados dos privados de tudo.
Digo-o e repito: um certo Portugal mais Povo e mais Fraco, mais ingénuo e menos lúcido
e mesmo o Portugal totalmente lúcido e totalmente informado mas pobre e obscuro de mais
para ser levando em linha de conta,
viveu na carne, em apenas três anos, uma implacável experiência intensa
do Abusivo. Não tivemos Floresta de Sherwood
onde nos refugiássemos do Nottinghamshire-Furto-Fiscal-Nightmare,
da autodestruição e autofagia e derrota económicas, do haraquiri anímico,
do maior crime social da história moderna portuguesa que passou pela venda de uma mentira,
a das PseudoReformas e HemiReformas e CleptoReformas,
a de que seria preciso deprimir de todas as formas os portugueses
para que o Estado finalmente resolvesse as suas inépcias,
as suas dívidas, os seus desperdícios,
os seus shows caros da merda para a Europa Ver Tratado de Lisboa, a Pompa da Mentira,
e resolvesse as suas paneleirices estilísticas pedantes num Luís Amado,
o maior pedantolas da praça lisboeta,
e resolvesse os seus défices, os seus ónus e lastros acumulados,
cevando-se do nosso sangue e da nossa penúria
precisamente uma Corte Inumerável de acessores caríssimos ao Défice,
de jornalistas mansos e veneradores de poderosos custosíssimos ao Défice,
de bufos, de bem governados à Pala-de-Todos Para Não Fazerem Um Caralho
desastrosos para o Défice,
de detentores de sinecuras, de Quadros Superiores da Merda,
esses sepulcros vivos marchetados de Défice,
estado de coisas que as manias exibicionistas passerelle
de um Sócrates-de-quem-apesar-de-tudo-um-Saramago-gosta
não ousaram perturbar. A Mentira, portanto, Campeia e Triunfa. O Povo dorme e aguenta.
Tínhamos de ser nós, as gentes, a ser fodidos por este Pol Pot,
exterminador sofisticado e providencial de todas as nossas condições de sobrevivência.
Depois há a conjuntura caótica internacional para servir de álibi e de desculpa.
lkj
Afinal, Nosso Senhor Jesus Cristo remiu,
com Altíssimo Preço, um monturo de merda: nós. Algum valor devemos ter ou então
somos todo um infinito equívoco irremediável que nem já o Sangue de um Deus Amoroso
poderá branquear, ao contrário, certamente, de outros casos inteligentes no Cosmos.
Ora um Rico, regra geral, agora sei por experiência de este meu contacto adesivo
com uma versão portuense deles, fez-se rico à custa de muito sangue,
de muita miséria alheia directa e indirecta.
Desde o que me conta com que armas adressava, credor,
os seus devedores, até ao abutre que espreita a falência alheia
para ir, hiena, cevar-se dos seus bens, propriedades, máquinas a baixo preço, e,
vendendo-as, ganhar o quíntuplo e assim fazer fortuna rápida
como quem vende a uva mijona na feira de Espinho.
Ser Rico pode ser isto: prosperar com a desgraça de muitos, sorrir com ela,
cantar e dançar porque alguém se fodeu e se vai fodendo às próprias mãos. É a selva.
É ter de ser Selva. Porque há mais astutos e menos astutos.
lkj
Puta que pariu as Televisões-Xanax, os Jornais-Xanax e as Rádios-Xanax de um País assim!
Puta que pariu o Abrupto, a guerra a Menezes,
o próprio Menezes e os lugares-comuns que varam de lés a lés toda a bloga servil
num só ponto de vista obrigatório, obediente e alinhado!
Puta que pariu a lentidão da Justiça e o ministro Pinho
a despromover-nos salarialmente na China ou o seu discurso económico Al-Shahhaf contínuo.
Puta que pariu os Júdices bem dispostos na SIC Notícias,
refastelados no risonho raciocínio darwiniano de que uma nova economia em Portugal
vai emergindo e que uma outra decrépita vai sendo decapitada, morta e enterrada,
que é a lei da vida, a competição, a lei dos mais aptos.
Puta que pariu as mulheres incapazes de orgasmo e que passam desumanas e secas
pelo porteiro que apesar de tudo as abençoa e cumprimenta e que sou eu.
Puta que pariu os inflados de si mesmos
que passam e pensam puta que pariu o porteiro que é só o porteiro
ao passo que eu que passo pelo porteiro sou uma merda importante e doutoral qualquer.
lkj
Se querem saber, só esta espécie de cognoscentes no Cosmos, a chamada Espécie Humana, pode ser tão abutre para com o Próximo, este aliás falecido conceito,
e proceder às piores barbaridades. Dêem-lhe uma oportunidade de pisar. Pisará.
lkj
Sim, esta foi mais uma noite com um euro de gorjeta. Na maioria é zero euros de gorjeta.
E ter um euro de gorjeta, assim como metade do mês de Maio por receber,
estar, Fauno, perto de esta Fauna de Ricos, à sua escala Solitários, à sua escala Infelizes,
entretidos numa poalha de Gozos Imperfeitos, de Possibilidades Egocentricamente Caducas,
é claramente para mim, novo Tântalo, pior que o Suplício de Tântalo,
inocente que sou de, para testar a omnisciência diva,
ter ido roubar os manjares divos
e de lhes servir, a eles deuses, em vez daqueles,
a própria carne de um meu filho Pélope qualquer.
çklkj
Estou de pé. Passo horas de pé. Pelo canto do olho,
vislumbro lá fora o mesmo gato cinza, bem nutrido, nobre, longínquo, que passa,
à hora certa, como uma rotina de gente que foi ali e já volta.
Vejo-o ou intuo-o obliquando novamente, sob uma luz muito branca, pelo lajedo branco.
Ei-lo num momento de cá para lá e noutro momento de lá para cá.
Ei-lo que passa lento, que passa a passo, cauda segura, despertando em mim
fomes de afago em pêlo vivo. Depois sobe umas escadas marmóreas negras,
perdendo-se silencioso no negrume. Cá dentro, a mesma mulher cinquentina, pesada,
maquilhagem vamp, que dança só, sempre perto de mim,
sempre apesar de mim,
odalisca a sua dança de cá para lá e de lá para cá,
quantas vezes abalroando-me a mim, que estou imóvel como estátua,
quantas vezes pisando e rasteirando outros clientes enquanto rola-compressora na pista.
Cá dentro, se não houvesse música, todos os dançantes pareceriam bonecos articulados,
suspensos de fios invisíveis, olhares que se cruzam e estudam intensos, que controlam
os parceiros mais apetitosos ou que se resignam ao vazio dos seus braços vazios.
lkj
De repente, saem as duas brasileiras que toda a noite,
no vaivém do fumo, me provocaram, roçando ancas, seios, muitas vezes em mim,
olhando-me sexualmente, estacando muito e sempre muito perto,
lambendo-me com o olhar, fellatio infinita com o olhar, a um palmo do meu,
prometendo, num só relance, um mar de luxúrias, com elas ambas de quatro,
multicanzanas exigidas, suplicadas, imploradas,
nádegas apontadas à minha espada-espora pronta, seu sexo manipulado,
penetração urgida,
gritada, pedida, implorada,
mãos sôfregas e certeiras cravadas em seus seios túrgidos manipulados,
roseas vaginas sôfregas exibidas a pedir o prazer da violência e a violência do prazer,
fúrias sexuais desencadeadas e uma maratona de orgasmos a três
por dias a fio.
lkj
Saem, marcando-me com o mesmo olhar felino.
Dão-me os cartões do consumo e sorriem com malícia. Sorriem. Brincam. Fitam-me.
Uma delas, ousada, vergando-me a nuca com a mão,
dá-me a estocada de um beijo fresco na boca. Riem. Cumpliciam ambas.
Conspiram devorar-me.
Saem. Saem com a falácia real e com o meu falo imaginário
nas suas bocas hábeis imaginárias, operárias.
Os homens que as acompanham, portugueses imberbes e fracos,
num embevecimento eufórico e parolo, são cúmplices ingénuos e inconscientes
de esse jogo sedutor fêmeo.
Saem. E o mormaço afogueador erecto de esse êxtase sem rosto
abandona-me igualmente,
ele, que se havia cravado no meu Coração, batida a batida em gradação,
fulgor pleno de Artilharia bem Erecta,
espinhando-o de um Musculado Desejo Estéril.
Estéril, porque sem amor. Estéril, porque sem futuro.

Comments

Tiago R Cardoso said…
Nem sei que te diga que não pareça um lugar comum....

Que se lixe digo na mesma, brilhante, simplesmente brilhante.
Anonymous said…
Se o que diz é verdadeiro, se não é ficcional, então está mesmo na hora de procurar outro trabalho, diferente desse, mais trabalho-cansaço e menos trabalho-tensão (mesmo com n caído).
Não se deixe afundar, caro amigo.
SEM MEDO said…
Estou com o "zedeportugal", lendo-o não acredito que esteja a desempenhar as funções que lhe atribuíram com o mínimo de profissionalismo exigido, independentemente de lhe pagarem bem ou muito mal como sempre faz questão de lembrar.
Posso ser sincero consigo?
Creio que se acomodou à situação, lá bem no fundo o seu emprego serve-lhe de desculpa, é o que tem e não procura mudar, o pub é o seu "muro das lamentações", a sua fonte de inspiração.
Conclusão, você gosta de ser visto como um coitadinho, a continuar assim nunca mais voltará a leccionar.
Você que tanta vez diz ter pena dos outros, começa a deixar-me com pena de si.
Mexa-se homem, arrebite.
Joaninha said…
Sem palavras.
Pata Negra said…
Hoje, enquanto tomava o café da manhã, alguém desabafava com camuflada ironia:
- A vida está má para os pobres mas olhe que para nós também não está grande coisa!
Um abraço a olhar para a casa que temos de reconstruir
KImdaMagna said…
Penso que é hora de partir para outra. Mesmo considerando que lá no fundo essa vivência do Pub e da Noite origine cargas de criatividade, ela está a transformar-te num eco repetitivo. Quero dizer para o bem ou para o mal essa tenebrosa noite/pub tomou conta de quase todos os momentos e que se reflecte na repetição dos ditos.

Seria bom sair dessa, espairecer,
pegando noutro género de trabalho. Só o facto da diferença ajudará...

Xaxuaxo
Anonymous said…
Joshua, isto é assim ... e não tem que saber ... põe-te na alheta daí para fora quando encontrares porto de abrigo mais seguro e menos traiçoeiro; aqui estamos condenados a vegetar e não a medrar; aqui mirra-se ...

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