BREVE APONTAMENTO-FODA-SE SOBRE A CRISE
Há razões objectivas por que o nosso heroísmo cívico e capacidade de encaixe não tenham tamanho. Somos tímidos. Somos individualistas. Individualistas no sucesso. Individualistas no sofrimento extremo, no suportar a insuportável carência que roça ou transpassa a miséria. Basta pensar na dieta extrema do anacoreta e meu amigo Jorge, estóico entre os estóicos, cenobita entre os cenobitas, sem filhos pela graça de Deus ou pela desgraça do diabo. Tudo bem que, há seis anos, tenha perdido muito dinheiro em noitadas pueris e depois, náufrago dessa procela de erros, assumido aqueles créditos imediatos, libertos em vinte e quatro horas, pelos quais um Banco empresta um chouriço para ganhar porco e meio, tudo à custa da ingenuidade e do cerco de desespero trucidante a acossar o cidadão! Mas que tu, Jorge, jantes pão e cerveja, almoces cerveja e pão, passes, sub-reptício, nos intervalos da escravidão a que já nem chamas trabalho, para ir lanchar pão e cerveja e, no fim do dia, lá te recolhas para cear cerveja e pão, explica como sobrevives e vais pagando, enquanto se te ressecam as carnes, enquanto se te afundam os olhos nessa magreza enrugada e obstinada. Vai para mais de três anos que subsistes assim e que, entre os meus sonhos, eu sonho em ajudar-te. Libertar-te de um tal fardo injusto, que te acaba, passou a ser uma das minhas metas. Não fosse o caso desgraçado de o meu caso se assemelhar ao desgraçado teu. Sem um braço amigo ou mil ou dezenas de milhar deles, solidariedade que ainda não foi inventada, em que irremediáveis defuntos incobráveis nos converteremos?!
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