CAVACO, ANATOMIA DE UM FIM ANUNCIADO
«Levantada a pesada histeria
do futebol, em que abafámos
durante quinze dias, talvez
se possa voltar a pensar
neste pobre país, que nos
deu a sardinha assada e o
sr. Seguro. Para lá do défice, que,
como toda a gente sabia, não se
vai cumprir sem meia dúzia de
apertões complementares, fica
ainda um sarilho que se julgou
temporário, mas continua a
crescer, com sintomas cada vez
mais graves, e que não parece
interessar os curiosos peritos da nossa praça: o Presidente da
República. No último domingo,
o Presidente da República foi
apupado em Guimarães, “capital
europeia da cultura” (uma
extravagância que sobreviveu ao
presente desastre), e em Castro
Daire, uma vila remota que não se
costuma distinguir nos tumultos
da Pátria, e que desta vez também
resolveu molhar a sopa.
Em Guimarães, o bom povo
(com alguns camaradas do PC
à mistura) chamou “gatuno”
ao Prof. Cavaco, alegadamente
por causa da promulgação do
Código de Trabalho: um acto
de uma certa, embora pouca,
racionalidade. Em Castro Daire,
dezenas de pessoas (não deve
haver muito mais) queriam
protestar contra o encerramento
do tribunal e as portagens
da auto-estrada (a A24) que
liga Viseu a Chaves: um puro
disparate constitucional. Do alto
da sua enormíssima importância,
Cavaco não comentou. Disse meia
dúzia de banalidades sobre o
“grande sucesso” de Guimarães
e voltou, suponho que depressa,
para Lisboa. Mas se naquela
cabeça existe um resto de bom
senso, com certeza que pensou
com inquietação na fragilidade
dele e do regime.
O que as cenas de Castro Daire
e de Guimarães demonstram,
para lá de qualquer dúvida, é
que o Presidente deixou de ser
visto como um árbitro da cena
política portuguesa e passou a
ser visto como um cúmplice.
Quer queira, quer não queira,
Cavaco perdeu a autoridade,
tradicionalmente associada a
Belém. O país percebeu o silêncio
culpado sobre Sócrates, que
ele julgou necessário para ser
reeleito; e percebeu a seguir a
razão dos discursos que fizeram
e apoiaram a coligação da direita.
Principalmente, ninguém lhe
desculpou, ou desculpará, a
fita inominável sobre a “pensão
de reforma” ou, por mais que
ele se explique, a água turva
do BPN e o Algarve. Da antiga
confi ança com que o eleitorado
inexplicavelmente o favorecia,
não sobra nada. Ao primeiro
problema sério, o regime e os
portugueses descobrirão para
seu desgosto e surpresa que
Belém é um vácuo.» Vasco Pulido Valente
Comments
dizia Jorge de Sena:
nem Cavaco nem eu «não merecia a pouca sorte» de ter nascido aqui