ESTRADO DO ESPÍRITO


Não me estou a sentir lá muito bem. Esta tosse. Este desânimo.
Ontem, as urgências tinham um ar naturalmente cigano ainda mais carregado.
Eu já sabia que seria assim. Que os ciganos plantariam acampamento ali,
à porta da Urgência. Fora isso o que acontecera de todas as outras imensas vezes,
numa outra intensa época em que transportei esperançoso
um querido e desesperado moribundo. Faz parte de um cenário imutável.
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Quatro ou cinco homens ciganos, todos barrigudos e obesos,
afinal são estas duas coisas distintas às vezes não justapostas,
entre os trinta e os cinquenta, conversavam exuberantemente por ali,
mãos nos bolsos, barba crescida, ar enlanguescido.
Um deles, o mais velho e o mais alto,
concitava todas as atenções para as suas narrativas,
bem sublinhadas nos braços esbracejantes, no menear vivo da cabeça,
no arregalar enfático dos olhos. Dominava. Tinha força e liderança.
Exemplificava. Ensinava da vida. Em torno dele,
os outros mostravam respeito e obediência, mal falavam.
lkj
As mulheres de negro cerrado, de alto a baixo,
com as suas crias de colo em colo, formavam outro grupo abundante ao lado.
Eram efectivamente muitos. Os homens jovens e adolescentes ciganos
também orbitando por ali não tinham barriga, eram muito, muito magros,
uns muito baixinhos outros muito altos, toscos e desengonçados,
quase todos imberbes, embora com os seus buços negros numa pele cor de cobre,
e as suas filhas ou sobrinhas ou primas pequeninas nos seus braços cooperativos,
formavam um grupo à parte dos dois outros, triste, submisso e apagado.
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Era esse o meu espectáculo notório enquanto se processava a minha imensa espera.
Que cansaço, que desgosto, que tristeza, eram os meus olhos nisto, não por eles,
mas por mim mesmo, olhando em arco para tudo, num grande abandono,
à luz do meu momento pela enésima vez derrotado, humilhado, descartado.
Os últimos dias de um trabalho, além de precário, também temporário,
foram uma desolação. Debalde me derramaram palavras de incitamento
ou de penetração psicológica. Certos diagnósticos e certos conselhos
à queima-roupa por vezes raspam a superfície virgem e bem irrigada da alma,
fazendo-a sangrar sem piedade: «Tens de ser mais pró-activo.
Tens de estar atento. Tens de te mexer mais.» Quando muito
logram ancorar-me a alguma esperança de que os últimos momentos
de trabalho ali não pareçam os últimos momentos de trabalho ali.
Preso com pinças. Antecipadamente desesperado.
E afinal, a docente chegou. Dei-lhe os elementos que acumulei.
Sorri amarelamente e desapareci dali, discreto, in a blaze of fury.
lkj
Hospital. Houve alterações por aqui. Os enfermeiros e os médicos
têm agora interfaces fabulosos: computadores tácteis
onde registam todos os pormenores de cada processo individual,
a triagem de Manchester funciona em pleno. Mas o tempo gasto continua,
tal como no passado, a ser de muitas horas de espera. Imensas.
Pode morrer-se na espera de uma overdose de tédio.
ljh
Peço-o e emprestam-mo. Um jornal. Quero alienar-me um pouco.
É desportivo. Ronaldo. Futebol. Selecção. Taças, Troféus, equipas. Dinheiro.
Que tristeza, que morte cá dentro! Os meus alunos eram fabulosos.
Noventa miúdos comportados, na maior parte alinhados, obedientes, cumpridores.
Libertados da agitação para a concentração serena de aprender,
Conhecer, praticar, exercitar o raciocínio em Língua Portuguesa.
lkj
Um caso ou outro, raro e extremo, de boçalidade horrível,
como aquela moça preguiçosa, nada inteligente e perturbada,
que agrediu uma colega, que a agrediu ostensiva e desproporcionadamente
sob as minhas barbas logo interventivas, sanando o caso ali de imediato.
Que coisa feia! Feia e rara! Outras duas moças da Escola
já se haviam engalfinhado presume-se por um rapaz. Saíram de maca. Hospital.
Escoriações. Arranhadelas. Hematomas. Dose cavalar de ridículo com açúcar.
lkj
Pedi-lhes um relatório ou versão do caso. Fizeram-no cada uma. No final da aula,
entregaram-mos e conversámos a reconciliação. Foi superficial e apressada.
Guardo na memória o relatório da moça boçal: um pequeno texto, três ou quatro linhas.
Erros ortográficos absolutamente dolorosos, como se nunca tivesse ido à escola.
Com a sua beleza selvagem, talvez um rebento da Afurada genuína, esta menina
trilha um caminho perigoso de incompetências acumuladas e o pior
é que reincide, é o espírito mais renitente e asinino que já vi.
Resiste às empatias construtivas, capaz de cuspir na mão que abençoa.
lkj
Moça agressiva, agreste, insolente, preguiçosa e, uma vez mais, violenta,
notavam-se-lhe variados estratagemas para evitar trabalhar,
apesar da pressão geral dos colegas em pleno cumprimento das tarefas
que não sabia ou podia ou queria acompanhar,
e cedo lhe notei a observação sorna e vulperina de qualquer brecha para desferir
ataques e capitalizar desmoralizações: «O stor não vai ficar cá, pois não?!»
Mas comigo era só trabalho e nenhumas intimidades e partilhas. Sequei-lhe a veleidade.
As aulas decorriam compostas, serenas, silenciosas. Trabalhava-se.
lkj
Nada. Passaram já quatro horas nesta urgência. Quanto mais espero,
mas me conformo e entristeço. Há aqui um pobre velho que esboça um levantamento.
Vocifera inconformismo. Parece que vai rebelar-se e agredir alguém.
Cala-se. A esposa, muito inchada, não concorda com a revolução pretendida.
Somos ali um gado imensamente paciente, nos dois sentidos.
Um nítido trolha acaba de chegar: ostenta no rosto três lanhos de unha sangrentos.
Foi unhado e desunhado por dedos-garfo. Pode ter sido a mulher. Uma mulher.
Olha-me porque o olho. O sangue está seco, brilhante, na face.
Parece dizer-me exibicionístico, num orgulho de soldado:
«É feia a ferida, não é?!».
kjh
Os fortes e os frágeis. No trabalho e na vida. Os cruéis e os compassivos.
Os humanos e os sádicos. Tenho tido umas luzes extra sobre esta coisa empírica.
Como se chega a um modo de estar na vida marcado pela perseguição bufa
do próximo? Como se desenvolvem caracteres apostados em perder os outros?
Esta tosse! Esta espera! Este desânimo! Acho que passarei o resto da minha vida
como aquela tribo de ciganos. Plantado na Urgência real
e simbólica da minha própria história.

Comments

antonio ganhão said…
O sonho não está no refúgio da tribo cigana, os únicos adaptados a essa imensa África colorida em que se está a transformar o nosso país...

O sonho, a vida, está precisamente no soltar da ancora... e tal como te submeteste à humilhante condição de espera, como escravo roceiro, aguardando a sua vez no hospital da roça, devias de te submeter a fazer aquilo que não gostas.

Já provaste saber lidar bem com a submissão e até de forma discreta.
joshua said…
António, sinto-me convidado à paralisia. Estou ancorado na desgraça. Tenho três bocas para vestir e alimentar e nenhuma esperança de o fazer à luz da minha formação.
Joaninha said…
Quem escreve como tu não está ancorado a desgraça nenhuma, está sim destinado a ser grande meu amigo, é certo.

Beijos
joshua said…
Deus te oiça, Joaninha.
quink644 said…
Como te compreendo...
-Grande texto, bem longo por sinal, terá sido escrito na urgência durante a espera? Não poderia deixar de fazer uma graçola, eu que detesto esperas e urgências, fui uma vez ao Hospital, esperei 2 horas e como não fui atendido vim-me embora, outra vez num Hospital particular também esperei mais de uma hora, mas como o estado físico me levava a desfalecer, acabei por dar entrada com mais urgência, era uma pneumonia. As outras visitas a hospitais fui sempre atendido de imediato, porque entrei sempre traumatizado com algo partido, e aí não se espera, mas é horrivel ter de esperar num posto médico. Um conselho quanto ao resto, tome iniciativa, escreva, faça algo, mas não espere por milagres no campo da educação, acredite que eles não surgirão, seja o seu próprio milagre. Força!!!
joshua said…
quink644, realmente o mal-estar é geral.

António, vejo que também tens experiência, e muita!, disto. Na verdade, tive os olhos bem abertos enquanto esperava. A escrita já ali tinha a sua génese em energia por dentro.

Obrigado pelas tuas palavras: concordo que terei de ser o meu milagre na educação ou realizar-me milagrosamente num plano ainda desconhecido.
Anonymous said…
Josh que maleita te deu desta feita?
Que te sucedeu que te obrigou a montar tenda nas Urgências?

Nada de relevante espero, embora nestas coisas cada um saiba melhor de si que todos os outros juntos por mais inteligentes e finos se julguem.

De qualquer modo folgo em saber-te ainda assim atento, espírito dissecante da nossa realidade feita acampamento e alarido ciganal à porta da Urgência ...

Bestas asininas como a que tiveste encontram-se em toda a parte e é com essa massa bruta que se está a construir esta piolheira abjecta há muito ano.

E assim há-de ser no futuro, pelo que se teme o pior. Para o País e para a Nação.
O melhor mesmo é que aqueles que possam zarpem daqui para fora!

Tu continua a persistir, mas olha que, e sem me querer dar ares, a tua insistência na Educação pode ser coisa debalde. Se lá não te querem, abre asas e abalança-te a outra coisa qualquer ...
joshua said…
Tarantino, sábias palavras as tuas. Todas elas. Terá de haver um caminho que eu possa trilhar sem estes custos emocionais, sem esta derrota psíquica a cada passo. Estou a ver se me ponho em pé por agora (acabo de ser derribado!). E seguirei adiante, aqui ou lá fora.
Anonymous said…
Boas melhoras.
Tiago R Cardoso said…
nem sei o que te diga que não pareça frase feita...

Algum caminho tens de tomar, alguma solução terá de existir...
Pata Negra said…
Quem desenha assm com palavras não precisa de pincéis. Bela fotografia, pena que tenhas de estar dos dois lados da objectiva.
Um abraço em sala de espera
joshua said…
Tiago, hei-de descobrir a minha solução ou então serei descoberto por alguma.

Caríssimo Pata Negra, pudesse eu desenhar-nos um presente mais pleno e feliz!

Aquele Abraço
Pequito Romero said…
Ó Josh e porque não te raspas para a Austrália?
Ouço dizer que procuram novamente emigrantes qualificados!
joshua said…
E é que vou mesmo, Pequito.
Anonymous said…
Caro Joshua,
é nos momentos de dor ou aperto que mais necessitamos de palavras de conforto, bem sei.
É também nesses momentos que sinto mais dificuldade em dizer o que quer que seja porque imagino sempre que toda a gente diz o mesmo, e fico na dúvida se vale a pena abrir a boca para não acrescentar nada de novo.
O meu vulcânico amigo tem de facto uma notável capacidade para a escrita. Com a sua vontade e alguma sorte (para tudo é precisa)poderá daí tirar dividendos.
Não se deixe desesperar por não conseguir trabalho no campo da sua formação. Sei o que isso é, por interposta pessoa (cônjuge) e como tal compreendo o desânimo e falta de força. Mas alguém com tão notável potencial tem de ser capaz de relativisar um pouco mais e aguardar dias melhores. Não tenho dúvidas que o excesso de docentes de hoje é a falta dos mesmos de amanhã. Como tantas outras coisas a colocação da docência é cíclica e antecipo luz ao fundo do túnel em que está a calcorrear caminho.
A atmosfera dos tempos em que vivemos sufoca-nos e turva-nos a esperança. Mas não nos tirará o ânimo. Não deixaremos.
Estou certo, creia-o! que poderá em breve viver da sua paixão pela nossa Língua.
Cá estarei para testemunhar e regozijar-me com isso.
Abraço.
joshua said…
Caríssimo André, as suas palavras versem sobre o que versem são sempre ímpares e aqui sempre bem-vindas. Pode acreditar que estas que aqui me deixa agora mesmo me são bálsamo reconfortante e encorajador. Como as dos meus demais amigos, jamais serão por mim esquecidas. A vida dá infindas cambalhotas. Terei Memória!

Aquele Abraço

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