CÁLIDO CALDO


Sintonizem o modus poético,
aquela frequência mental associativa, revestida de onírico imprevisto.
Deixem que um fio de palavras - quaisquer palavras - se agregue por atracção fonética,
por atracção semântica.
Deixem que uma delas domine e outras se submetam.
Sintam a lógica de subordinação ou de poder que se estabelece entre elas - palavras fortes,
palavras fracas, palavras humildes, palavras que violam,
palavras que laceram, elas, as verdadeiras putas,
mais putas, muito mais, que os leitores que nos agarram e nos largam.
Reparem como de repente há texto - o poema, o verdadeiro, o autêntico e genuíno
puro poema-whiskey, não passa de um texto enlouquecido - e foi (o 'de repente' e o 'haver texto')
como que uma sopa que correu bem.
Regressem à mancha onde jazem, fumegantes, as palavras,
acrescentem mais sal, uma partícula de malagueta,
façam uma prova ao paladar,
oiçam-se a dizer isto,
façam um discurso.
Notaram que a tirar e a pôr palavras se desencadeiam ritmos inesperado-novos,
uma exigência de prazer ou um sentido do nojo?

Agora, pronto, afastem-se. Rua daqui!
Ponham-se nas putas!
Saiam, saiam, saiam!
Não vos quero nem um minuto perto de essas palavras.
São minhas.
Já disse que não vos quero perto!
O poema está ferido de morte.
O meu poema sangra.
Mania de tornar claro, racional e inteligível um poema!
Alguém pergunta: «Explica-me esse beijo, essa lágrima.»?
O poema não explica nada, não se explica em nada, não ensina nada, não mostra nada.
O poema é uma coisa respiratória que tem de ser respirada.
O poema é excreção que precisa ser excretada.
Saiam de perto da minha excreção!
Não foi feito para ser compreendido.
Compreender é prostituir.
Foi feito para existir e isso bastar.
Lírico. O lírico é haver um olhar único, porque doido,
de alguém único sobre a experiência única de tudo.
Lírico é praticar o olhar.
Quem se dedica às rimas é um técnico de rimas.
O lírico é outra coisa muito inédita, muito impossível, que acontece com uma raridade diamantina.

Se o meu poema cavalgasse e, brandindo espadas, trespassasse certas rimas que parecem, a quem as faz,
esse grasnar de ganso,
esse zurrar de burro,
geniais, esplêndidas, seria um knight-poema, um poema-andante,
justiceiro,
exercendo a justa violência,
vertendo o justificadíssimo sangue de esses versos sem alma, de esses versos-esterco,
existirem indevidamente, atrapalhando a verdade.

Voltem, leitores. Podem voltar!
Armemos uma tenda neste fim de dia,
façamos uma fogueira que comece por arder no meu coração combustível instável.
Deitemo-nos de mãos dadas, formemos uma estrela sobre a relva, à volta das palavras.
Por cima, reparemos, haverá estrelas.
As cigarras imitam com um som disperso e desigual o haver por cima, disperso e desigual, esse areal de estelar.
Vai um chouriço?
Assêmo-lo e comamos dele.
Está-se bem neste lugar.
De quando em quando, uma brisa vem e esvai-se em árvore.
Trouxe um garrafão de Lambrusco e, juro,
não havemos de sair daqui sem a paixão adocicada e espumosa de nos apaixonarmos
rubramente pelo poema ameno por causa de este milagroso convívio
ao calor-lenha das palavras.
Bebamos! Bebamos muito e,
na alegria que nos álcool-solte e álcool-revista,
amemos as bebedeiras declamatórias.
É preciso que se ame, que se ame muito, a embriaguês do poema dito,
a embriaguês pura de uma só emoção desencadeada pelo poema-disparo,
pelo poema armadilhado de insólita surpresa.
Pelo poema.

Pelo meu poema!

Comments

Popular Posts