VOO RENTE


Ave, loura ave,
canário e pato,
corpo de canário, bico de pato,
bico deproporcional, gigantesco,
como ridícula acusação cómica à evolução e aos raciocínios sobre a evolução
que cientistas camelos emitiram alguma vez,
ave, irónica ave,
tu depenas-me de impaciências e dóis-me com o teu canto agudo, penetrante,
estupidamente alegre, hoje.
Não posso ouvir-te, hoje.
Há em mim dissonâncias de nojo perante o teu trinar saudável nesta hora, entre todas, furiosa.
Não te vejo. Escuto-te e desenha-se-me logo no meu escutar-te, no fundo nítido da minha mente,
uma imagem tridimensional tua, sonar do teu esqueleto minúsculo,
da tua penugem penteada, amarela,
tal como o bico de pato que te aponho (porque me apetece apor-te um bico descomunal em forma de colher) - acusação de ridículo, esse bico,
ironia evolutiva, ironia que defeca ouro e ri de haver evolução,
evolução para onde, que agora me massacras?

Pássaro feliz e estúpido, cala-te!
Pronto, não te calas.
Calo-te eu: arranco-te imaginariamente essas penas da cauda:
para somar cómico
ao cómico da tua cor,
ao cómico do teu bico fictício,
eis agora o cómico do teu cu ao léu,
coisa palhaça e natural,
porque há que rir de ti e do conceito evolução
quando me torturas de sublime.

A natureza é experimentalista no saber por onde ir,
tacteia formas,
tacteia eficiência,
mete-se por becos, neanderthaliza extinções,
abre portas,
fecha janelas, coloca grades, estabelece muros altos.
Vai. Morre. Apaga. Reanima. Regressa.
Inventa asas de morcego, pêlos,
membranas interdigitais, mais barbatana menos asa - não há evolução,
o que há projectos por entre contingências.
Há recreio. Recria-se e recreia-se, a vida.
Resiste. Prevalece e prevalecer é jogo como a palavra no poema é pedra lapidada,
ímpar entre as demais pedras lapidadas.

Não há evolução, ó camelos por todo o lado!
As coisas são estáticas no seu misterioso e oculto dinamismo infracorpuscular.
Cientistas estúpidos, obtusos cientistas,
a vida ruidosa, a vida que trina e, canora,
cantarola músicas de alegria, hoje, em face do meu nojo indiferente perante tanta beleza,
em face da minha frieza ecológica de hoje,
é e será sempre um grande «Creio»!
Credo in vnvm Devm!
É essa a grande mensagem à fio dental esquerda de cuecas,
à grande esquerda dos grandes preservativos usados,
das grandes sucções e raspagens intra-uterinas,
das grandes grandezas homossexuais,
das grandes vampirices subsidiais,
da grande cultura e do grande avanço social,
do grande martelo materialista e do grande foi-se ateu -
do que a esquerda precisa é disto: um pica-pau,
um canário-pato
a gritar,
tal como as pedras,
tal como as estrelas,
gritam:
credo in vnvm Devm.

As classes estão em luta
e o conflito recrudesce - havia afinal um capitalismo dialéctico por detrás do biombo marxista,
as aves adoecem, gripam, grasnam, - os homens obstinam-se, morrem, sofrem.

Credo in vnvm Devm!
A esquerda messiânica das grandes diarreias retóricas científicas, sociológicas,
está a evoluir,
a montanha pariu um rato
e um rato é já qualquer coisa!

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