PRÓDIGOS (ABRAÇANDO D. MANUEL CLEMENTE, BISPO DO PORTO)
No mundo é perdido que se anda.
Errância e desatino,
trazemos quase cicatrizados os longínquos lanhos infantis
Errância e desatino,
trazemos quase cicatrizados os longínquos lanhos infantis
de um amor recebido como pouco,
mesmo se superabundou.
Encontrar-se um homem no meio de este ruído e de esta massa pastosa das emoções
desmedidas, mal-medidas, natureza da emoção,
é, por vezes, não haver como possa um homem encontrar-se.
Século de pródigos, filhos da abundância das coisas e da indigência e precaridade dos afectos,
rodeados das bolotas proibitivas do sentido
enquanto guardamos os porcos de toda a sorte de humilhações...
E a herança dissipada é a do encontro pessoa a pessoa
sem os muros comparativos,
sem os muros interpostos pelo medo de perder seja o que for nesse encontro.
Penso na areia no caminho,
nas voltas que as palavras dão até assentarem no Abraço por que se espera para além de tudo.
Toda a ciência e toda a literatura convergem no maior acontecimento poético de sempre,
tudo quanto se gritou,
todo o ranho e toda a baba de dor desprendidos
por um contorcido rosto humano
apontam para o fulcro poético da História,
de todas as histórias - que um pai assassinado, porque rejeitado em vida,
se levante e vá ao encontro do filho mais novo, quando o pressente,
ainda na longínqua curva do caminho, de regresso.
Que um pai, que um coração ilimitadamente amoroso e paterno
maternize o sobressalto de alegria por ver regressado, roto e sujo, lá longe ainda,
aquele filho.
Que se alegre, vá ao seu encontro, o abrace, o cubra de beijos
e ser isto tudo quanto precisamos saber de Deus, tudo também quanto precisamos imitar d'Ele.
Pois que eu não queira outra prodigalidade
senão a prodigalidade do enternecimento,
do respeito absoluto pela mais radical liberdade de cada um,
bem entendido em que consiste essa liberdade.
O que decorre de amar muito é condescender muito
- recolocarmo-nos precisamente onde o outro se encontra.
Que eu não queira outra prodigalidade senão a prodigalidade da paciência, da misericórdia
em sentido etimologicamente puro: coração que se desdobra e sente o poço do outro, identificando-se com ele e sentindo as suas dores, que se aproxima para chorar e para sofrer
com a emoção acesa, vela ardendo que nos humaniza.
A inflexibilidade e a rejeição como modo de estar permanente magoaram-me num padre.
Um padre miura afiado nas pontas, distribuidor de remoques e recados invasivos e brutos,
Nunca mais quis sofrer com isso: que a aspereza e a exigência sem pedagogia
superabundassem em detrimento da escuta e do acolhimento,
que o remoque fosse mais e a delicadeza menos - perante isto, excluí-me, como Paulo, hiperbolizando, estaria disposto a todo se perder se assim ganhasse o seu povo judeu para Cristo.
Afastei-me. Cortei. Quis preservar-me da estupidez e da brutalidade num padre desumano.
Um dia tive um sonho. Era um homem, um novo padre que chegava não sei aonde e que, em vez de frieza e repelência, aquilo a que eu estava habituado a sentir, com que estava habituado a contar, acolhia-me caloroso, reintegrando-me na paz e na comunhão.
Há sonhos e sonhos, mas este tinha materialidade e as marcas indeléveis da força símbólica:
lembro-me do sorriso e das mãos que se me estenderam,
francas, abertas, inspirando confiança plena.
Lembro-me de o meu coração
passar de negro a luminoso só com esse gesto.
Lembro a magreza e a calva de esse homem, padre, símbolo, alguém que nunca vi.
E lembro ainda haver povo em torno dele, inundado de alegria.
Sei que o olhar de Cristo,
o modo como reparava em cada qual e reparava em cada qual o medo da rejeição
e toda a distorção íntima, sobretudo nos humildes, não nos altivos e ufanos,
esse olhar foi a luz mais brilhante de todos os afectos já havidos nesta Terra.
Quando penso nisso, não tenho dúvidas, só nostalgia e esperança:
o olhar já ama e já acolhe e já salva e já integra e já promete
qualquer coisa fabulosa, preparada para este mundo.
Uma grande Páscoa,
uma Páscoa Cósmica
em que o género humano ascenda, finalmente,
ao Olhar Amoroso
que sobre ele desce.
Entretanto, haja tempo para a clemência,
D. Manuel Clemente, Bispo do meu Porto,
e essa clemência feche as feridas abertas pelos brutais.
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