MEU AVÔ ANDARILHO
Noventa e um anos, trinta e três dos quais diante de mim.
Hoje abri aquela porta lá de casa
e meu ser pressentia aquele odor de décadas
Hoje abri aquela porta lá de casa
e meu ser pressentia aquele odor de décadas
que deixavas como uma assinatura de suor,
na roupa dependurada atrás, depois nas paredes,
na roupa dependurada atrás, depois nas paredes,
depois nas coisas,
por todo aquele espaço que é exíguo ali.
Ali, onde pousavas,
Ali, onde pousavas,
com a pátina da tua pele em pó viático, em sal,
o teu eterno boné transpirado,
o teu transpirado casaco.
Resumos-roupa da tua vida, uma vida em girassol,
saudando muito todas as pessoas.
o teu eterno boné transpirado,
o teu transpirado casaco.
Resumos-roupa da tua vida, uma vida em girassol,
saudando muito todas as pessoas.
Passaram quatro anos desde que consentiste à morte
que te tomasse.
Nunca conheci ninguém tão rijo
que dela escarnecesse tanto como tu.
Tanta saúde, energia, resiliência,
eram em ti troça pura à morte que foi chegando para os outros à tua volta.
Ela, que veio e foi levando a tua geração e outras gerações,
numa generosidade de pai-natal, desta vez mortal, pai-mortal,
enquanto meditabundo as sepultavas.
Ela, ceifando sempre, movimento de ceifa igual ao movimento semeador,
a todos, mas nunca a ti.
Quantas lágrimas, quanta saudade, junto às lages
dos que, imensos, te precederam!
O teu meio de transporte eram essas pernas:
caminhando, caminhando muito todos os dias,
cheio de ritmo e leveza,
percorrendo distâncias extraordinárias numa idade extraordinária,
peregrinavas por fora o Longínquo para dentro de ti.
Como quero imitar-te nesse uso das pernas
assim tão mercuriano e romeiro!
Lembro por isso o que fazias com o teu corpo: movimento!
Em evasão do labirinto dos ses, no teu passado, não importa: movimento.
Eu sei que celebravas a tua vida
e o evangelho de teres sempre razão no esdrúxulo campeonato invisível do mérito
como o equívoco de quem convoca razões para ser amado.
Tinhas uma vociferada razão indiscutível
como um cilindro que passa o asfalto-família a liso.
Não importa.
Era do teu odor marcado, de décadas, por detrás daquela porta, que eu falava,
meu avô,
odor hoje mais atenuado e imperceptível, mas ainda lá,
sinal do teu vôo liberto em glória
para acenos infinitos a quem passa,
num mesmo mariposa pairar,
num mesmo incandear gaivota,
ante a luz irresistível de haver
tantas Pessoas
Além
como te houvera aquém-morte.
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