"PARRHESIA" — INDIVÍDUO E SOCIEDADE
«O
processo de Jesus a que
sempre regressamos
na Páscoa condenou
um homem por dizer
a verdade. No Novo
Testamento encontramos
muitas manifestações desse dizer
a verdade, dessa revelação da
verdade, que aí e no pensamento
cristão se confundem com a
confiança que podem ter os que
acreditam em Deus e os que
aceitam pregar “francamente”,
como diz S. Paulo, em nome
de Jesus. Quando se apresenta
aos fariseus, Jesus afirma
abertamente que é filho de
Deus. Jesus assume que tem de
usar um discurso directo, claro,
desprovido de obscuridade ou
figuras de estilo.
Este falar com franqueza, ou
este falar livre (não é por acaso
que os franceses dizem “franc
parler” e os ingleses “free speech”,
discurso franco ou discurso livre)
era uma prática a que os antigos
gregos chamavam “parrhesia”.
Na Grécia antiga o conceito de
parrhesia significava literalmente
“falar tudo” e, por arrastamento,
“falar livremente”, “falar
ousadamente”, o que em certos
contextos era não só necessário
Pedro Lomba
como inescapável. Falar com
parrhesia não consistia numa
simples actividade verbal,
não era apenas liberdade de
expressão, porque aquele
que discursava com parrhesia
aceitava dizer tudo, com
abertura, aceitava dizer a
verdade para o bem comum,
mesmo em situação de risco
pessoal. Não omitia nada, não
concedia nada, não tinha em
vista convencer uma audiência
mas expor uma verdade
potencialmente inconveniente
e destruidora. E, como não
conhecia que consequências
recairiam sobre si por dizer o
que disse, os riscos podiam ser
de morte.
No último curso que deu
no Collège de France antes
de morrer, Michel Foucault
dedicou-se a estudar a parrhesia
como conceito essencial da
vida política para os gregos,
relacionando-o com o papel da
verdade e dos discursos sobre
a verdade em democracia. Era
um conceito ambivalente, difícil
de deslindar. Foucault lembrava
que já na Grécia a parrhesia era
entendida tanto num sentido
positivo (o que diz tudo para
o bem comum) como negativo
(o que diz qualquer coisa que
lhe vem à cabeça, o que não se
cala, o que não se restringe). Por
isso, podíamos ver a democracia
como o regime que permitia a
parrhesia, mas também como
o que facilitava o seu uso
destemperado por quem tudo
diz sem pensar no que diz.
Para regressarmos ao processo
de Jesus Cristo, torna-se agora
evidente que a sua condenação
não partiu só de uma multidão
ou, dizendo de outra maneira,
de uma maioria democrática,
ansiosa por punir uma voz
que lhe parecia fraudulenta e
ameaçadora. Foi, mais do que
isso, a condenação de um acto
de parrhesia, a recusa de um
gesto corajoso de franqueza.
Porque em democracia — e
essa é uma das lições políticas
do julgamento de Jesus — são
sobretudo os que dizem falar com
abertura, falar ousadamente,
que mais expostos ficam a um
voto de desconfiança e rejeição.
Temos muitos exemplos disso
sempre que alguém denuncia
um escândalo, uma fraude, uma
mentira colectiva — e a multidão
reage inquieta, talvez por ter sido
disturbada no seu sono injusto.
A parrhesia, o acto de dizer
a verdade, pode ser perigoso
para a sociedade no seu todo,
tal como pode ser perigoso
para o indivíduo na sua própria
vida e integridade. Ninguém
diria que viver em democracia
é “viver perigosamente”, mas é
isso exactamente que é. E quem
nunca teve ou procurou o seu
momento de parrhesia, falando
tudo, aceitando todos os riscos de
uma espécie de conversão?» Pedro Lomba
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