PREDATÓRIA VOZ DO NADA


Gosto de ler os sábios que ainda nos restam:

Baptista-Bastos é um deles. Tão sensível quanto nós
às acções secas e às malfeitorias dos que nos governam,
tão atento e reactivo, como nós,
em face das construções-de-imagem desumanas e artificiais,
lembra Nestor, na Ilíada,
voz prudente e equilibrada, nas consultas aos deuses, nos conselhos aos homens.
O tempo deu-nos novas preocupações, quase inesperadas: o Oco, o Falso,
devoram-nos todos os dias,
transformam o cidadão em presa fácil em quase todos os planos da vida,
salvo para aqueles que se alienam ou subscrevem que sejamos presas fáceis
em todos os planos da vida.
lkj
Grassa em Portugal uma lógica de opressão e de silêncio.
Há quem navegue nela.
Há quem não a queira ver.
Há quem não acredite que exista,
mas todos os tiques absolutistas e sebastianinos e salazarentos,
plutocratizando tudo o mais possível, se concentram hoje nessa opressão e nesse silêncio.
Se concentram num homem.
Se concentram numa voz. Voz desenhada, maquilhada, sob a plástica do esgar pelo sorriso.
Uma voz além-gente, não-gente, apesar da gente.
lkj
A VOZ NA TELEVISÃO
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Sentei-me para escrever um texto saudoso e álacre sobre a Ava Gardner.
Acabara de rever, em DVD, A Condessa Descalça,
o filme em que Mankiewicz iluminou, vital, os seios míticos
e as ancas essenciais da então chamada "o mais belo animal do mundo".
lkj
Pensava ilustrar a beleza renascentista da imensamente adorada,
aplicando, à imaginada crónica, um breve toque intelectual,
com uma citação de Shakespeare,
que, no Hamlet, faz dizer a Horácio:
"Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia."
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Há; melhor: havia - a Ava Gardner, síntese de todas as deusas voláteis e etéreas.
Os adjectivos não eram maus, pensei,
sacudido por áspera nostalgia de mim próprio.
Preparava-me, pois, para comover, levemente embora,

os leitores da minha geração, acaso de outras,
com estes abandonos líricos, eis senão quando uma voz na televisão,
lá dentro, atraiu a minha malvada curiosidade e desviou-me do saudoso intento.
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Que dizia a voz, assim tão importante,

que sobrelevava as instâncias dos meus impulsos de autor de imprensa?
Era um homem. E fazia troça cruel de quem dele desacordava:
de sindicatos,
de jornalistas,
de comentadores,
de todos os partidos que não o seu,
mas também de alguns daqueles, iguais comungantes,
em atrito com o que ele fazia.
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Não percebi muito bem onde o homem falava: congresso, reunião, assembleia, igreja?
Sei que o homem estava a deixar-nos para trás;
e não há nada mais penoso do que sermos deixados para trás.
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O homem na televisão era somente voz:
voz que apenas a si mesmo ouvia;
voz inevitável para ela própria;
voz impessoal, velha, fatigada como uma solenidade, inconvicta,
em pleno processo de desumanização.
O homem falava para se ouvir. Falava; não estava a dizer nada.
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Elogiava-se e ao Governo que dirigia.

Na Saúde, na Justiça, na Economia, na Cultura,
no Emprego, na Educação, nas Obras Públicas, tudo deslizava,
com suavidade, para o irreversível ponto de exclamação
que será a sociedade próspera e abundante.
O absurdo atingia a dimensão da inconsciência abjecta.
O homem na televisão deixara de o ser: era, unicamente, voz.
Voz efémera, que desembarcava numa auto-admiração inviolável;
voz de catálogo turístico.
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As vozes humanas possuem cor, luminosidade, magia,

transcendência, grandeza, música, presença física.
A voz do homem na televisão era dissimulada, quadrada e cava.
Uma mentira instantânea que se repetia sem perdão. Um eco do oco.
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Regressei à Condessa Descalça e à memória da frase de Bogart:

"A ilusão procura sempre dar solidez ao vento."
Ia para continuar. Mas o meu espaço é este.
Que o homem fique com a sua voz; eu, com a minha repulsa.
E por aqui me fecho, como diria mestre Camilo.
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Baptista-Bastos, in «DN», 30 de Janeiro de 2008

Comments

quintarantino said…
Eu cá gosto de te ler! Mai' nada. Hoje estou espartano de palavras.
Pata Negra said…
O homem além da voz tem a imagem que vive no seu espelho. Bem lido!
Um abraço sem voz
Joshua
Às vezes é melhor o silêncio quando nos enchem de conversa fiada. E é melhor o pensamento que nos leva a outras paragens. E é melhor o engenho da escrita para nos vingarmos da mediocridade.
Tiago R Cardoso said…
Sinceramente tou como o Quintino, gosto é de te ler, é que esses que andam por ai, figuras publicas e "escritores", já à muito que me decepcionaram...

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