EU, JOAQUIM, E O DOM SOBRENATURAL DA GREVE
A rua é o meu lugar preferido. Na rua, tenho o sol, tenho o ar odoroso, o frio, o calor, a passerelle gratuita das moças boas, cujas pernocas roliças, rosto celestial e simétrico, indumentária minimalista, perfume sedutor de não haver perfume nenhum, premeiam a liberdade absoluta que me assiste mim de andar na rua com os olhos de Álvaro de Campos. Sim, ainda tenho trabalho. Sim, sou professor precário, o palhaço cumpridor, o otário para todo o serviço, sempre dedicado. O País é justo, como se vê. Tanto estou aqui como ali. Tanto ganho isto como aquilo. E quanto mais longe, mais caro trabalhar só para viver. Mal. Sim, só pode fazer greve quem trabalha e não vê perigar o seu posto. Não é, infelizmente, o meu caso, pelo que, para mim, greve é todos os dias. Mesmo trabalhando, cumprindo os mínimos do meu dever e horário, estou de greve, no âmago de mim sou toda uma irónica, cínica, invisível e indivisível, greve de pessoa, enquanto laboriosamente combato por iogurtes e outros bens alimentares para as filhas. Antítese da derrota preconizada para nós, europeus, sou eu com a minha laboriosa greve. Também leio Rui Ramos e o seu bilhete acerca das greves contraproducentes e até aplaudo sempre que posso João Duque, o anti-greve de serviço, mas um homem sério que não consta seja um Riquinho-de-Direita como os manifestistas e Riquinhos-de-Esquerda com terror de tumultos que lhes façam perigar a Riqueza-de-Esquerda, décadas de Prosperidade-de-Esquerda. Sou um legítimo grevista quotidiano com pouco mais de quatrocentos euros/mês, pelo que, para mim, a legitimidade de uma greve, além de total, parece evidente que só assiste a quem a pode agarrar. Eu já estou na rua. Faço greve todos os dias. Ando na rua todos os dias. Ao irritante desdém-contempto socratista para com todos os grevistas não sucederá agora nem a perseguição assanhada de ninguém, nem qualquer força política torcionária dos direitos e legitimidades, nem qualquer polícia de costumes económicos, a nós, já tão oprimidos de Fisco e sob Salários de Merda vai para mais de dez anos. Basta-nos a consciência da Festa Pífia das Greves por decreto que depois metem a viola no saco nos demais dias e trabalham que nem mouros. Os direitos fundamentais, como o da Greve, não se discutem. Viva a minha Greve! E tu, se a puderes fazer, viva a tua Greve! A Mário Soares, um Enriquecido-Súbito-de-Esquerda, um Santo-de-Esquerda apenas peticiono uns quinhentos euros para viver melhor este Novembro magro, enquanto me acomodo neste banco de jardim, à luz do sol, para ler-lhe aquela sensibilidade numa frase só possível a Ricos-da-Política, e que reza o seguinte: «Não podemos saudar democraticamente a chamada ‘rua árabe’ e temer as nossas próprias ruas e praças.» Eu, que estou nas praças, nas ruas e nas betesgas, eu, que calcorreio tudo e apanho o Metro e o autocarro e às vezes até boleia, contaminando de suor o carro da boleia, eu não tenho visto Ninguém-de-Esquerda a chegar-se à frente para uma dádiva-de-Esquerda, uma Sopa-de-Esquerda, um donativo-de-Esquerda, com nome, rosto, decisão pessoal. E tenho estado sempre aqui, à espera. Sou um intelectual-do-Centro, em Greve, sempre, e também preciso de viver. Por que é que Os-de-Esquerda não me valem?! E preciso de trocos, notas de cinco euros, a bucha de uma nota de dez euros diária para a dignidade do meu mísero dia de hoje. Não se trata assim Intelectuais-de-Centro, como eu. Há por aí alguém Compassivo-de-Esquerda, que me possa ajudar, que tenha morado gratuitamente numa dessas casas camarárias-de-Esquerda, em Lisboa, ou que, pelo menos, tenha abichado uns Subsídios-de-Esquerda à pala da Cultura para depois mandar passear a Cultura e transformar os subsídios-de-Esquerda em Jantaradas-de-Esquerda e Bons-Vinhos-de-Esquerda e até, consta, Cocaína-de-Esquerda em Festanças-Moderadas-de-Esquerda? Não há, pois não?! Então foda-se!, que tenho de regressar à minha, muito minha, Greve a sós. Esquerda o caralho!
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