ZERO MANUELA POSITIVA
Mais calma, na mesma antitética agitação por moedas,
e uma noite depois da célebre noite relatada na posta anterior,
a jovem das moedas, na já mencionada desusada sofreguidão, deve sublinhar-se!,
aborda-me ainda nem sequer acabo de estacionar o meu carro,
para mais uma directa laboriosa: «Então que foi aquilo ontem com o meu patrão?»
Aprendo-lhe o nome, Manuela. E a Manuela repete o mesmo relato.
Que, quando era bonita, era prostituta e ele a procurava
e até era conivente com o seu toxicoproblema.
E muitas vezes a levara aos locais quentes para que consumasse os consumos.
Que agora era seropositiva terminal.
lkj
Manuela anda muito activa e estranha ultimamente,
abelha de transeunte em transeunte-flor - como que numa febre natalícia
de acentuado toxiconsumo em contraste com o apagamento distante que tantas vezes lhe vi.
Dei-lhe o que pude, mas, convencido da sua condição terminal,
antes que me voltasse as costas por alguém que passasse,
ainda lhe disse, por o crer, tocando-lhe, firme, o ombro:
«Olha, Manuela, não me interessa que mintas muito e à velocidade da luz.
Dou-te o que devo. O que posso. Não te aflijas, verás que Deus cuida de ti.
Sabe que Deus cuida de ti, mesmo que contra ti,
quando não te cuidas.»
E a Manuela voou com um subtil gesto grato,
deslizando, mirrada e ressequida, como um fungo, abelha-sobre alguém novo passando.
Manuela-fruto carcomido, ele mesmo consumido de consumos
e aproveitado pelos estica-larica imorais, pelos vampiros, pelos dúbios e impuros,
mas sobretudo algoz de si mesmo.
lkj
Na verdade, Manuela é toda a gente por todo o lado.
lkj
Ao dizer-lhas, disse-mas a mim mesmo a essas palavras em que, no limite, acredito.
Palavras que, no limite, me alentam neste oceano tumultuoso de opressões
e de ilusórias dulcificações do existir:
«Deus cuida de mim, mesmo que contra mim se não me cuido.»
lkj
Mais tarde, já a noite acabara, a Manuela plantou-se ali para o mesmo assédio ao meu Patrão.
Mas ele, dono de uma casa cheia esvaziada, foi peremptório:
«Não te quero a pedir aqui. Se te encontrar lá, na rua,
ainda te posso dar qualquer coisa. Aqui não.»
Mas a Manuela não desarmava: «É para pagar a pensão.»
«Mas tu achas que me enganas?
São 5:30 da manhã e tu ainda queres pernoitar numa Pensão?
Qualquer arrumador ou pedicholas como tu faz cem euros por dia facilmente. Tem paciência.
Não te vou dar nada. Tem paciência.»
E a Manuela, depois de tanto ter rondado e insistido e lamuriado, desapareceu dali.
Instado a não deixar que novamente se aproximasse, ainda lhe disse, ao meu patrãozito,
que me compadecera do facto de ela se me declarar seropositiva terminal.
«Seropositiva terminal? Então deve ser seropositiva terminal há duzentos mil anos. Achas?
E ontem passei-me com ela, esteve aí a inventar umas cenas a meu respeito.»
Fiquei convencido que entre ambas as partes, a Manuela e meu Patrão,
haverá por ventura um contencioso com a vida toda e com a verdade toda de cada qual.
Nunca se saberá os limites, as fissuras e os interstícios, nessa contenda surda.
lkj
O meu patrão é infinitamente faceto.
Tendo os seus defeitos, (uma tendência exploradora nata com que tantas vezes se tenta)
tem também uma graça natural,
uma dimensão de acabado cromo simpático e pacífico,
manifesta quando, miando, tenta cantar e é artístico e cómico aí,
quando diz as suas frases de ordem na sua vozinha zequinhas,
quando as pronuncia no seu Nortense, no seu e meu Portuensês,
mais vincado nele que em mim, e com o qual tão bem me identifico.
Há, posso revelar, finalizando por agora,
um nexo entre o rosto e o jeito de ser do Rui Veloso
e o rosto e o jeito de ser do meu patrão, um resistente e guerreiro da Noite.
Óculos e tudo.
Talvez se conheçam pessoalmente, não sei, mas se há um carácter e um tipo portuenses,
estão defnitivamente condensados nesses dois.
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