ALCOÓLICA EM TRATAMENTO
Contaram-me há dias que uma das moças,
para mim das mais impertinentes e aborrecidas clientes do Pub,
era afinal uma alcoólica anónima em tratamento, que era inteligente e especial.
lkj
De facto, todo aquele comportamento eufórico, descontrolado,
a roçar os meus limites (vinha malcheirenta, postava-se à minha frente
entre o ir e voltar para fumar lá fora, pedindo-me para dançar e questionando-me absurdos)
das duas primeiras vezes que lá fora
faria pensar tudo menos da inteligência e do ser especial.
lkj
Chegava sozinha, tentava engatar um dos homens carentes lá batidos.
Bebia finos, dançava extravagantemente e não havia meio de sair,
mesmo quando passava da hora e exorbitava na seca que me dava.
lkj
As duas últimas vezes, porém, parecia-me outra pessoa e a pouco e pouco
dobrou a minha desconfiança do que seria a situação costumeira all-night-long.
Chegava simpática e sóbria. Vinha com um jovem companheiro que mais parecia tutor dela.
Comportava-se bem. Ela bebia Coca-Cola e ele o seu fino.
Ficavam pouco tempo. Saíam em cordialidade cúmplice comigo
e eu apreciei a mudança.
lkj
Foi quando me relataram o que ela ousara dizer ao meu Patrão,
ainda na época das bebedeiras, que me convenci de como esta jovem era especial
e inteligente porque sensível ao perfil de um homem que terá falhado em ser amado:
«Tu julgas que és amado, mas não és.»
lkj
Esta moça pode ter muitos defeitos mas por uma vez acertou.
O meu patrão solitário é um homem clamorosamente só.
Durante algum tempo apiedei-me dele e acompanhava-o nos fim das madrugadas.
Mas não há almoços nem pequenos-almoços grátis.
Há-de haver sempre um objectivo por detrás da mais cândida generosidade.
Tem mais empregados que nunca e nunca pagou menos que alguma vez por isso.
Despediu, sob acordo, um ou dois dos antigos cujos vencimentos eram elevados e agora
com cinco ali a afadigar-se na madrugada paga-lhes no total menos
que por um só daqueles antigos despedidos.
É a chamada gestão. Está no seu direito
e eu nem sou dos que mais se possa queixar ali.
lkj
Mas ser o preço a solidão? É certo que ele é um perdulário, um gastador descontrolado,
dado simultaneamente a muito calculismo aproveitador e a alguma generosidade
com as pessoas que dependam dele,
mas não ser amado é sempre uma colheita que se semeia.
E para ele não ser amado é não ser amado dos filhos,
não ser amado das ex-mulheres, não ser amado dos amigos,
odiado pelos invejosos dele lá no Pub, não ser amado das putas a quem pagou
intermitências interruptivas à sua temível, oleosa, e alastrante solidão,
todo esse não ser amado pesa-me nele.
lkj
Vinte e cinco euros a menos, e pagamentos às pinguinhas,
levam-me a romper com os pequenos-almoços grátis e solidários com ele.
Abalo dali, mal termino de fazer o que me incumbe e alego deveres urgentes.
Mato a fome noutro lugar a sós. Preciso de sobreviver aos naufrágios dos outros
que se dizem inafundáveis e resistentes lutadores nesta vida, como ele diz de si mesmo.
Preciso ganhar integralmente o meu dinheiro e não dar argumentos compensatórios disso
a quem me pague generosamente os pequenos-almoços.
lkj
Os clientes do Pub são histórias que preenchem o enigma total que nos somos,
mal desatamos a olhar para o enigmático neles.
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