QUADRO MARINHO, O JOCA
Inalar toda a água marinha que posso, no vaivém das vagas.
Estaciono o corpo à beira-rebentação sob a música convulsionada
de cada onda crashando longamente em espumas de energia perdida
que se espraia em aplauso.
lkj
Inalar. Inalar mais, até ao ardor dos olhos, do cérebro.
Tu ficas a ver-me, olhas o Brasil no horizonte adivinhado,
nostálgica, grávida da minha semente.
Reergo-me da poça escavada por detrás da rocha grande a contemplar também
para Ocidente e para Oriente: vejo a luz plúmbea que se recria no fim da tarde,
vejo a magnífica solidão dos casais com duas crias, ralos e pacatos, já na penumbra,
festejando-se quatro a quatro por sobre o extenso areal.
Brincadeiras. Levezas familiares.
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Sem frio e com tempo, apesar do teu frio, meu Amor Equatorial.
«Olha, Linda, vai ali um tipo que foi o meu principal rival desportivo,
durante uma breve fase da adolescência.»
Já vai calvo e seco de carnes, o Joca. A cinco metros daria para acenar-me.
Mulher. Dois filhos pequenos. Um casal deles. Perfeito.
Ah, eis ali o seu automóvel, um Mercedes Classe A.
lkj
O Joca sempre foi um emproadão e continua igual.
Não me reconhece e devia, o Peneirento de Merda.
Eu fui o primeiro sol da glória dos duplos mortais sem trampolim, lá na Terra.
Depois veio e tornou-se ele o glorioso sol dos triplos mortais,
das piruetas e dos encarpados com mini-trampolim. Eu ajudei-o e iniciei-o nisso.
Fui eu a primeira estrela absoluta a sacar aclamações rendidas de Gladiador e Toureiro,
na Faena-Fado-Fandango de me exibir, ao final de cada Ano Desportivo, no Ginásio.
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Depois chegou ele à minha Terra, ao meu Reino, como uma novidade exótica e bem nascida,
sem um quarto do estoicismo isolacionista de Leste soviético
e do saber de norte-americanismo cultural que me caracterizava
e foi a aclamação fêmea adolescencial por inteiro,
para minha raiva e desmoralização,
meus super-poderes em crise, meu ciúme em alta.
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Ainda para mais, chegar a ouvir da minha Paula,
essa baixinha acabadinha de chegar da Alemanha,
no meio do grupo dos ginastas, numa amena cavaqueira cheia de hormonas e tusas,
esse tiro de canos cerrados no meu peito à distância de um metro,
que, preferir por preferir, o preferiria indubitavelmente a ele-Joca e não a mim,
isso derrotou-me e deixou-me mazelas indeléveis, insónias de preterição.
Porque não se adora uma gaja à toa durante um ano inteirinho,
nem se arde de desejo a todo o pano sem consequências,
quando se tem somente catorze anos.
E eu esgotara todo o meu arsenal do ridículo
para tentar namorar com a Paula dos Grandes Seios,
essa luso-alemã roliça, tão anã e apetecível,
e em quem, nas binas do aquecimento inicial, eu tanto tocava naturalmente,
sem querer, querendo tanto
e também a quem nunca escondi as minhas descomunais e intermináveis erecções públicas
de lhe estar próximo, de lhe roçar no tecido sedoso transpirado, tão pele,
erecções que nunca pude ou nunca procurei disfarçar, incitado por tal presença
tão Carne Suculenta, enrubescido,
durante os exercícios de aquecimento ou à distância, olhando-a abrasado,
nas interacções em binas com ela, ruborizado!
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Mas enfim, mais velho que eu e em vantagem por isso,
o Joca viera para ser novo paradigma local.
E eu parti, jovem leão velho, a ser sol noutro lado e noutra coisa.
Nervos em franja. Derrotado. Desmoralizado.
«Amizade? Não, querida, sempre fomos rivais. Exclusivamente rivais».
Rivais pela glória, pelo brilho grego dos nossos corpos
no seu esplendor em Pose e Movimento,
na sua potência declarada e competida.
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Reinara eu seis anos ali. Comecei a reinar aos nove de idade e fui em tudo inédito e ousado.
Cedi o meu Reino somente aos catorze. Nada mau!
O Joca lesionava-se muito. Chegou tarde. Reinou pouco. Talvez dois ou três anos.
Não tinha o meu estoicismo isolacionista de Leste soviético.
Ambiente familiar de luxo o seu, que podia eu contra ter ele perceptora
e outras aquisições domésticas moralizadoras e avançadas?!
Sobrava-me Ânimo e Ambição, mas não mais ali.
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«Vês? Acolá brinca o Joca, feliz, com a sua mulher, os seus dois filhos, o Grande Cagão».
Cá estou eu na merda outra vez, contigo, com a nossa filha. Grávidos, tesos, felizes.
Fase filha da puta esta e bastou um erro de secretaria,
mais um erro-conveniência orçamental
da Segurança Social para nos esganarmos como nos esganamos agora,
enquanto não é reposta justiça no resultado. E falta tanto para esse parcial dia!
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O meu ginásio é a Bloga, hoje. Re-miniscente de mim mesmo,
busco uma aclamação de Apolo Que Fere de Longe,
tenho dentro de mim um Zeus Tonitroante que exige idolatria-adoração incondicionais.
«Não, querida, não gosto e nunca gostei do emproado do Joca».
Sou um homem sem capacidade para conceder o benefício da benevolência
a quem notoriamente me subestime, deprecie, humilhe e hostilize,
coisa que esse Joca fazia com mestria e requintes de crueldade, excluíndo-me.
O meu amor da humildade e dos humildes é o reverso do meu Ego perigoso,
criado à custa de me dizerem que eu não chegava lá, que não conseguia,
à custa de quantas exclusões me aconteceram e que acabei por dobrar em triunfo.
O olhar do Joca era toda uma classificação da minha efígie viva, ali, com ele concorrencial.
Era uma desclassificação excluidora do meu monótono vestuário e de mim nele metido.
Era uma subclassificação da minha sociabilidade nula, sublimada em suor,
eu, que me habituara a nunca ir a festas de aniversário nem a fazê-las,
na missão de eu mesmo ser Misterioso, Imiscível com os insensatos colegas da escola,
Inacessivelmente Sábio, Santo e Diferente. Radicalmente Diferente,
precocemente Angustiado. Precocemente Só,
como só o são claramente os Velhos e os Eremitas!
lkj
O Joca nunca saía do seu pedestal absolutista de adorado fêmeo
e nunca empatizava comigo, único ali experiente, modelar, disciplinado, inatacável.
Ficava ele altivo a contemplar-se numa autobabação de gato,
lavando-se interminável, áspera língua, cego por si.
Eu não abria mão do meu estatuto de anos no Ginásio,
do meu silêncio, da minha distância defensiva.
Aproximar-me era rebaixar-me. Atrapalhar-me de ridículo. Prestar vassalagem.
Nem pensar. Pelo Orgulho é que vou. E fui.
lkj
«Não suporto partilhar a minha divindade esplendente, querida!»
Nem suporto de repente ser invisível. Uma vez rival, para sempre rival.
É a minha natureza.
lkjh
«A Paula das Mamas Grandes? Não, nada se passou entre ela e o Joca.
O Joca nunca estivera interessado. Era só vaidade e implícita tusa mesmo».
Da mesma idade ambos, mais velhos e experientes que nós,
já tinham alguém. Não se queriam,
a não ser no topo da hierarquia cerrada do desejo geral.
Dedicavam-se era a constantes sondagens de popularidade
e tusa entre o nosso grupo de ginastas.
Embora por vezes pense que toda aquela conversa
sobre com quem é que ela namoraria, se comigo se com ele,
ao dizer a frio na minha cara que seria com o Joca
fora uma jogada para que eu me mancasse.
O sorriso da Paula fora-me sempre um convite irresistível e privilegiador.
lkj
E resultou!
lkj
Ferir o meu Orgulho fora a arma de derradeira escolha.
Comments
Conseguirás tu encontrar a disciplina exigida a um duplo salto mortal?
Gostei aqui das memorias, que memoria comprida que tu tens.
Um abraço.