OS OSSOS DE PAULO DE TARSO


Ninguém mais marcante para a nossa civilização que o homem que já não vivia, era Cristo que vivia nele. Sofredor. Forte, mas fisicamente insignificante. Perseguido. Encarcerado. Apaixonado, repleto do Espírito, ele consumou a primeira ruptura com os judaizantes para organizar e dar alento às primeiras comunidades cristãs da Lei Nova. Daí que os ossos confirmados seus representem pelo Papa, ao fim de dois mil anos de aventura da Fé, sejam um precioso símbolo de um arauto da Ressurreição do Cristo, da Ressurreição da Carne, da Catabase do Reino: «Uma minúscula perfuração foi realizada para introduzir uma sonda especial» que permitiu retirar do túmulo «minúsculos fragmentos de ossos; os testes com Carbono 14 demonstraram que pertenceram a uma pessoa que teria vivido entre o I e o II séculos», anunciou o Papa. «Isto parece confirmar a tradição unânime de que se trataria dos restos mortais do apóstolo Paulo», afirmou Bento XVI. A sonda também permitiu a descoberta «de restos de um precioso tecido de linho púrpura, com bordados em ouro, e de um tecido azul com filamentos de linho» assim como que «grânulos de incenso», acrescentou. O apóstolo Paulo morreu decapitado, no ano de 67, em Roma, sob a égide de Nero. Era descendente de uma família judaica de Tarso (Ásia Menor), tendo-se convertido à religião cristã nascente após ter perseguido os primeiros adeptos e martirizado Estevão. Foi considerado o evangelizador de povos pagãos no Mediterrâneo. Descobri e li há alguns anos com extremo prazer a obra Nero, de Latour Saint-Ybars, e reproduzo parcialmente o capítulo, "PEDRO EM ROMA – PRIMEIROS CRISTÃOS – PRIMEIROS SINTOMAS DO CRISTIANISMO": «Os progressos do cristianismo em Roma foram imensos e imediatos. A essa interminável multidão vinda de todos os cantos do mundo e que já não tinha daí em diante nem deuses, nem família, nem pátria, a lei nova dava a vida e o futuro; o respeito por si próprio e o amor ao próximo; mas apenas concluída essa primeira conquista da multidão, aproximava-se o momento em que seria necessário anunciá-la ao mundo, dar explicações aos filósofos; de que génio, de que audácia, de que virtude deveria estar animado o homem que ousasse predizer ao Antigo Mundo o seu fim próximo? Paulo, de Tarso, o primeiro perseguidor dos cristãos, foi o herói desse empreendimento visionário. Impaciente por se entregar a um último combate, desafiava César como ao seu maior adversário, levava a loucura da cruz até à esperança de dominar a cidade que dominava o mundo. Os seus trabalhos e as suas longas viagens pelas províncias tinham-no já tornado conhecido em todo o Oriente. Algum tempo antes de ser conduzido a Roma, carregado de grilhões para comparecer diante de Nero, escrevia aos cristãos de Corinto: «Vi-me muitas vezes diante da morte; recebi dos Judeus, por cinco vezes, trinta e nove chicotadas, fui vergastado três vezes, fui apedrejado uma vez, três vezes naufraguei; passei um dia e uma noite no fundo do mar; estive muitas vezes, durante as minhas viagens, nos perigos dos rios, nos perigos dos ladrões, nos perigos dos pagãos, nos perigos das cidades, nos perigos dos desertos, nos perigos do mar, nos perigos dos falsos irmãos. Sofri todas as espécies de trabalhos e de fadigas, frequentes vigílias, a fome, a sede, muitos jejuns, o frio e a nudez. Além destes males, a vigilância de todas as Igrejas causa-me numerosas dificuldades, com as quais sofro todos os dias. Quem está doente sem que eu sofra? Quem é escandalizado sem que eu core?... Em Damasco, o governador queria manter-me prisioneiro; desceram-me num cesto por uma janela ao longo da muralha e salvei-me das suas mãos». São Paulo omite aqui três anos passados no deserto da Arábia, para se preparar para os trabalhos do apostolado pelas austeridades do ascetismo. No ano 61 de Nosso Senhor J. C., algum tempo antes da morte de Burro, o grande apóstolo foi a Roma. Desde a sua partida de Cesareia, na Palestina, Paulo suportara durante vários dias as fadigas de uma tempestade e de um naufrágio. O navio que o levava tinha-se afundado. Teve de ficar três meses de Inverno na ilha de Malta. Logo que foi possível voltar ao mar, o centurião Júlio, que o levava a Roma, meteu-se num navio de Alexandria com todos os seus prisioneiros. De Malta foi a Siracusa, onde passou três dias, depois a Régio, onde esperou um dia pelo vento e dali ao golfo de Pouzzoles, onde deixou o mar. Paulo encontrou nas cidades da Itália os convertidos de Pedro e todas as Igrejas que este tinha fundado. Os cristãos de Pouzzoles, sabedores dos combates e da glória de Paulo, retiveram-no sete dias entre eles. O centurião concedeu esse favor ao seu prisioneiro, cuja conduta e discursos o tinham enchido de veneração. Quando partiram para Roma, Paulo ia carregado de grilhões. A seu lado, caminhavam Aristarco e Lucas, seus discípulos, que tinham querido segui-lo e auxiliá-lo, e que não se envergonhavam das suas cadeias. Pedro e os seus coadjutores tinham já dado a conhecer aos cristãos de Roma a virtude eminente e o génio de Paulo. «Eles vieram à nossa frente – diz São Lucas – até ao Forum de Ápio, às Três Tabernas.» Esse Forum de Ápio era a vinte léguas de Roma; nada prova melhor a união perfeita que reinava entre os cristãos e os apóstolos do que esta homenagem rendida pelo mais forte ao mais glorioso. Paulo atravessou as Montanhas Latinas perto do lago de Némi, que dominava o templo de Diana, protectora dessas velhas florestas, e perto de Arícia, cujas colinas estavam cobertas de Oliveiras, de azinheiras e de vinhas em latada. Mais longe, à direita, nos Montes Albanos, apareceu-lhe o templo de Júpiter, santuário da confederação Latina. De Boviles, berço dos Júlios, pôde admirar, dos dois lados da estrada para Roma, templos, teatros, casas de campo, uma grande álea de monumentos. Extensos aquedutos, assentes sobre milhares de arcadas, corriam para Roma de todos os pontos do horizonte e conduziam à cidade, do alto das montanhas, fontes cativas e rios desviados dos seus cursos. Se chegou a 6 de Julho, como se pensa, durante as festas de Apolo, pôde ver os sacrifícios e a alegria dos Romanos coroados de louros. O centurião Júlio, que conduzira Paulo do Oriente para a Itália enviou, ao chegar a Roma, o seu prisioneiro ao prefeito do pretório. Este era Burro. Prestaram-lhe relato tão favorável da virtude de Paulo, que tinham podido apreciar nos perigos da viagem, que lhe foi poupada a vergonha da prisão. Paulo foi autorizado particularmente a habitar com um guarda, ao qual estava ligado por uma cadeia. Esse soldado era substituído diariamente por um dos seus camaradas do pretório, que vinha tomar a sua vez. Assim, os magistrados não tinham a temer que o prisioneiro empreendesse a fuga e Paulo tinha nesse pretoriano um defensor contra os Judeus. Estes eram então os inimigos declarados do cristianismo, a que chamavam a nova seita e combatiam com ardor por todo o mundo, onde as suas sinagogas existiam. Mas esses adversários do cristianismo eram também suas testemunhas, pois, ao afirmar a sua própria história e religião, punham a descoberto os próprios fundamentos do novo culto. Três dias depois da chegada, Paulo pediu aos principais de entre os Judeus que passassem por sua casa para ouvirem explicações sobre a sua conduta na Judeia. Não houve quaisquer recriminações; Paulo narrou a sua conversão, expôs a sua missão especial e falou de manhã até à noite, provando por Moisés e pelos profetas a divindade de Jesus Cristo. Tinha escolhido a sua habitação num dos bairros de Roma mais frequentados, entre o Forum e o Campo de Marte, então cobertos de monumentos; São Jerónimo e São Lucas, nos Autos dos Apóstolos, dizem que ficou durante dois anos num dos aposentos de um albergue da via larga, in via lata; é hoje o Corso, e a igreja de Santa Maria, contígua ao palácio Dória, marca o lugar consagrado pela estada de Paulo. Foi ali que durante dois anos exerceu o seu ensinamento sublime com toda a liberdade perante aqueles que vieram visitá-lo. Entrançava esteiras e confeccionava tendas para se manter. Todos os dias um soldado do pretório vinha guardá-lo e, se saía pela cidade, Paulo era preso com uma cadeia ao legionário que o vigiava; todos os dias, um novo guarda escutava as suas palavras e tornava-se testemunha da sua vida. A abolição da escravidão antiga, um dos grandes benefícios do cristianismo, encontra-se em embrião na epístola a Filémon, que Paulo escreveu na prisão a favor de um escravo fugitivo, Onésimo, que tinha socorrido, convertido e transformado em dignitário da Igreja nova. Pelo processo moderno que consiste em dar bruscamente a liberdade a homens incapazes de a ela darem bom uso, arrasta-os inevitavelmente à sua perda; os cristãos dos primeiros séculos procediam de outra forma: amavam o escravo, faziam dele um homem antes de o libertar. Os melhores de entre os pagãos, é certo, tratavam com suavidade os desgraçados manchados pela servidão; mas julgavam-nos inferiores por natureza em relação ao homem livre. Cícero censurava-se por sentir saudade dos escravos que perdera; Nero, pelo contrário, aprecia os que o servem fielmente; ele dizia de um escravo mau que ninguém lhe parecia mais digno de confiança do que esse servidor e que não tinha nada fechado nem vedado para ele. O acto de tolerância e de humanidade inspirado por Paulo a Filémon é do mesmo ano da sentença injusta que condenou os quatrocentos escravos do prefeito de Roma à morte simultânea, para expiarem o assassínio de que estavam inocentes. Esta declaração pública de igualdade fraternal dos homens, seguida de exemplos gritantes e corajosamente praticada pelos cristãos, causou em Roma uma espécie de surpresa e de assombro. Era uma misericórdia violenta que arrebatava ao amo o seu escravo e que lhe arrancava do coração todo o ódio contra todos os usos e todas as leis. Grandes progressos assinalaram o sermão de Paulo. Pedro tinha já difundido o cristianismo pelo mundo; Paulo apresentou-o à luz do dia, à opinião pública, e fê-lo entrar com labor na história romana onde Nero havia, sem o saber, de lhe dar tão grande relevo. O apóstolo dos infiéis termina assim a sua epístola aos Filípios: «Os irmãos que estão comigo saúdam-vos, todos os santos vos saúdam, também, principalmente os que pertencem à casa de César.» Pergunta-se quem poderiam ser os novos convertidos e os santos colocados ao lado de Nero e sobre esse terreno vago, onde tudo quanto se tem o direito de aventar é bem difícil de provar, a dúvida e a fé iniciaram um debate que persiste ainda. É certo que os soldados e demais gente do pretório tiveram de se preocupar com o prisioneiro, que este lhes pregou a sua doutrina e que Burro, tendo de julgar o seu apelo a César, deve ter tomado conhecimento e fixado a sua atenção nesse ponto. São Paulo acentuou-nos ele próprio que teve toda a liberdade para exercer a doutrina nova, e que aqueles que o rodeavam seguiram o seu exemplo. Quanto às relações de amizade e à correspondência epistolar que teriam existido entre Paulo e Séneca, se bem que esta questão seja ainda ventilada nos nossos dias, a Igreja nunca admitiu as epístolas nos livro canónicos; os Padres e os escrivães eclesiásticos nunca as aceitaram. Com a chegada do cristianismo, a independência do espírito humano exerceu-se em sentidos diversos; uns, vendo ali a verdade, submeteram-se e foram-lhe dedicados até à morte; outros combateram-no energicamente como a um inimigo; outros ainda, os homens instruídos, aceitaram-no como uma doutrina filosófica digna de ser estudada e classificada entre os sistemas. Deste número foram, sem dúvida, Epicteto e Séneca; sobretudo Epicteto, que, por esta altura, escravo desconhecido de Epafrodite, secretário de Nero, estava em posição de apreciar as máximas de humanidade que constituíam todo o fundo da religião nova. Encontram-se, com efeito, nestes dois autores, preceitos, sentimentos e até expressões que não existiam na linguagem filosófica antes do aparecimento do cristianismo. Reconhece-se até nas obras dos sábios e dos poetas mais inacessíveis a influência da doutrina nova, os primeiros vestígios do trabalho secreto que transformava os espíritos e os corações. Marcial queixa-se amargamente, é contrariado nos seus prazeres, um inimigo secreto veio perturbar o seu lar. Admitido às pequenas ceias do lúgubre Domiciano, familiarizado com todos os vícios do seu tempo, humilha sua mulher com preferências condenáveis; despreza-a e diz-lhe adeus: Domiciano tinha-lhe concedido o privilégio das três crianças. Mais tarde volta para a mulher, mas a pureza do leito conjugal é-lhe insípida: é uma cortesã e não uma esposa que ele pretende. Quantas censuras injustas e quantas injúrias! Que maravilhoso latim e que grosseiros pensamentos! Separaram-se por fim. Trinta e cinco anos depois, voltamos a encontrar Marcial no seu país; apaziguado pela velhice, purificado pelos campos, emocionado com a sua felicidade, prefere aos jardins de Alcino, que lhe ofereceria a própria Nausica, as águas das fontes e o pomar, a torre branca e as pombas, os viveiros e os campos, pequeno reino que a sua querida Marcela lhe deu ao regressar da sua longa ausência. Plínio, o Antigo, tão materialista e homem tão honesto, dá-nos também informações preciosas para a história dos primeiros séculos cristãos. Eis o que nos diz dos Essénios, precursores do cristianismo, convertidos antecipadamente à fé nova e que foram os fundadores das ordens monásticas nas solidões da Judeia. «A Ocidente do lago Asfáltico, mas longe da margem, existem os Essénios, nação única, admirável entre todos os povos do mundo; sem mulher, sem amores, sem dinheiro, companheira das palmeiras, renova-se todos os dias graças aos estrangeiros e é considerável o número de homens cansados da vida que a onda do destino atrai a adoptar estes costumes. Assim, coisa inacreditável, esta nação onde há séculos ninguém nasce é no entanto eterna, tão fecundo é para o seu futuro o arrependimento dos outros pela sua vida passada». Não se pode afirmar que os ministros de Nero, Burro e Séneca, se tenham interessado por Paulo e que a justiça da sua causa ou a sua doutrina sublime os tenha aproximado dele. Quem eram, porém, esses cristãos da casa de César que saudavam os seus irmãos de Filipo por intermédio de Paulo?... São João Crisóstomo fala-nos de um copeiro e de uma concubina de Nero, que o apóstolo teria subtraído ao príncipe para os elevar à dignidade cristã. A concubina é, talvez, essa escrava comprada no Oriente, que inspirara o primeiro amor de Nero, essa bela Acteia, que ele quis desposar primeiro e que desprezou mais tarde. Ela esteve afastada das prosperidades do seu reinado e quando ele se tornou alvo da execração pública, voltaram a encontrá-la junto da sua pira. Pompónia Groecina é-nos, também, apresentada por todos os historiadores eclesiásticos como fruto das prédicas de Pedro. Não se conhece figura, entrevista na média luz da História, que se rodeie de encanto mais misterioso e que exprima mais doce gravidade. Era mulher de Plautio, vencedor dos Bretões durante o reinado de Augusto; acusaram-na de superstições estranhas e um tribunal de família, presidido pelo marido, teve de julgá-la conforme as leis. Aqui, a majestade romana volta a encontrar-se mesmo no lar. Examinado o caso em pormenor, a esposa foi absolvida, e reconhecida pelo marido a sua conduta irrepreensível. É natural pensar que a superstição estranha que lhe censuravam, sem nada ter a reprovar na sua conduta, era o cristianismo. Os grandes resultados obtidos pela livre palavra de Paulo, até mesmo no palácio dos Césares, estão fora de dúvida; mas seria temerário afirmar, sem provas, quais foram entre as grandes figuras, então em evidência, aquelas que o apóstolo conquistou para a verdade. Os testemunhos consideráveis que se erguem a favor do cristianismo de Séneca, desde os primeiros séculos até aos nossos dias, far-nos-iam desejar encontrarmo-nos suficientemente convencidos para aceitar esse facto das maiores autoridades. Ousar-se-ia quase afirmá-lo, quando se considera o a propósito e as circunstâncias favoráveis em que a verdade lhe apareceu; o que aqui se diz de Séneca pode aplicar-se a Burro, aos estóicos, ao próprio Tráseas e aos seus amigos, principalmente a essa infeliz Octávia, só e abandonada depois de tantos crimes, arrastando nos esplendores do Palatino o pressentimento da sua morte próxima. Os caracteres nobres e os grandes espíritos da sociedade pagã refugiaram-se no novo asilo da religião cristã com alegria ainda maior porque, alheios às prosperidades do império, nada tinham à sua volta que pudesse cativar-lhes o coração.»

Comments

antonio ganhão said…
Onde terá ficado a espada de Paulo, a que se lhe escapou da bainha, quando caíu cego do seu cavalo?
Talvez que eu, «como um abortivo» como Paulo, que a si próprio se compara, tente uma explicação: A espada, sinónimo de divisão, ficou no coração do Cristo, a quem «tu persegues...» como Ele lhe disse, na estrada para Damasco, a unidade dos cristão do seu tempo «no amor a nós na fé...» (como Paulo declara na carta a Tito) essa ficou e continuou até hoje no Espírito de Amor que une! Pelo sangue e pelo Corpo Único que SOMOS!
Lura do Grilo said…
Interessante e cativante. Estive na pequena prisão onde terão ficado retidos S. Pedro e mais tarde S. Paulo. Fiquei comovido.

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