DECAMERON — FREI ALBERTO DE IMOLA III

»Passados alguns dias, juntamente com um companheiro de confiança, foi a casa de Dona Lisetta e, retirando-se com ela para uma sala onde não podia ser visto por outras pessoas, atirou-se de joelhos à frente dela e exclamou: ‘Senhora, rogo-vos por Deus que me perdoeis o que vos disse no domingo ao falar sobre a vossa beleza, porque fui duramente castigado na noite a seguir, tanto que tive de ficar de cama e só hoje me pude levantar.’ Disse-lhe a dama pateta: ‘E quem vos castigou assim?’ Respondeu Frei Alberto: ‘Dir-vo-lo-ei. Estando eu em oração durante a noite como sempre costumo estar, vi subitamente na minha cela um grande clarão. Antes de me voltar para ver do que se tratava, vi sobre mim um belíssimo jovem com um grosso cacete na mão. Agarrou-me pela capa, pôs-me de pé e deu-me tantas cacetadas que todo me quebrou. Perguntei-lhe depois por que me fizera aquilo e ele respondeu: “Porque hoje te atreveste a censurar as celestiais belezas de Dona Lisetta, à qual eu amo, excluindo Deus, acima de todas as coisas.” Eu então perguntei-lhe: “Quem sois vós?” Respondeu-me que era o anjo Gabriel. “Ó meu senhor ― disse eu ―, rogo-vos que me perdoeis.” Ele então prosseguiu: “Perdoo-te desde que aceites procurá-la logo que te seja possível e lhe peças que te perdoe. Se ela não te perdoar, voltarei cá e dar-te-ei tantas que te deixarei em mísero estado no tempo todo que viveres.” O que ele disse depois não me atrevo a dizer-vos, se antes não me perdoardes.’ A dama cabeça-de-vento, que tinha alguma falta de sal, deliciava-se toda ao ouvir aquelas palavras e acreditava nelas como absolutamente verdadeiras. Passado um pouco, disse: ‘Eu bem vos dizia, Frei Alberto, que as minhas belezas eram celestiais, mas com a ajuda de Deus tenho pena de vós e desde já, para não serdes mais castigado, perdoo-vos se realmente me disserdes o que o anjo vos disse depois.’ Frei Alberto declarou: ‘Senhora, uma vez que me perdoastes, de boa vontade o direi. Mas recordo-vos uma coisa: seja o que for que eu vos conte, tereis o cuidado de nada dizer a ninguém do mundo se não quiserdes estragar a vossa vida, vós que sois a mais ditosa dama que hoje existe no mundo. O anjo Gabriel disse-me para eu vos dizer que lhe agradais tanto que teria vindo muitas vezes passar a noite convosco se não fosse poder assustar-vos. Ora ele manda-vos dizer por meu intermédio que vos quer visitar uma noite e demorar-se um pouco convosco. Mas como ele é anjo e se vier em forma de anjo não o podereis tocar, diz que por amor de vós quer vir na forma de homem. Por isso pede que lhe mandeis dizer quando quereis que ele venha e na forma de quem, que ele assim há-de vir. Bem vos podeis considerar ditosa, mais do que qualquer outra mulher que viva.’ A dama simplória respondeu que muito lhe agradava saber que o anjo Gabriel a amava, pois também ela o amava muito e acendia sempre uma vela de um matapão onde quer que o visse pintado. Quando ele quisesse vir, seria bem-vindo e encontrá-la-ia completamente só no quarto, mas com o pacto de que a não trocaria pela Virgem Maria, pois lhe tinham dito que ele a amava muito, o que lhe parecia ser verdade, dado que, sempre que o via, estava de joelhos junto dela. Fora isto, ele podia vir na forma que quisesse, desde que lhe não viesse meter medo. Declarou Frei Alberto: ‘Senhora, falais sensatamente e irei combinar com ele como vós dizeis, mas podeis conceder-me um grande favor, que não vos custará nada. O favor é o seguinte: deixai-o vir com o meu corpo. E ouvi em que me fazeis o favor: é que o anjo tirará a minha alma do corpo e pô-la-á no paraíso, entrando ele em mim; e, enquanto ele estiver convosco, a minha estará no paraíso.’ Respondeu a pacóvia dama: ‘Muito me agrada; desejo que, em paga das cacetadas que ele vos deu por minha causa, tenhais essa consolação.’ Prosseguiu Frei Alberto: ‘Fareis então com que, esta noite, ele encontre aberta a porta da vossa casa para ele entrar; vindo em corpo humano como há-de vir, não poderia entrar senão pela porta.’ A dama respondeu que assim faria. Frei Alberto foi-se embora e ela ficou a dar tantos saltos de alegria que a camisa nem lhe tocava o cu, parecendo-lhe faltarem mil anos até que o anjo Gabriel viesse ter com ela.

Comments

Miguel said…
Grande hisrória, obrigado por partilhares.

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