UM SEDIMENTO ÉPICO DE DESESPERO

«Tem vinte anos este "Aprazível Suicídio em Grupo" de Arto Paasilinna. É o 10.º romance do escritor, o segundo publicado em Portugal depois de "A Lebre de Vatanen", livro absolutamente fundador de uma voz literária de latitude finlandesa. Depois da consciência ecológica ser pretexto para uma desconstrução irónica de uma forma de vaguear pela vida, o estilo foi afinado, refinado mesmo, esbarrando em temas mais complexos: "O maior inimigo dos finlandeses é a tristeza, a melancolia, uma apatia insondável. Ao longo de milhares de anos um pesar tem pairado sobre este povo infeliz, submetendo-o ao seu jugo e tornando assim a sua alma taciturna e sisuda. Tão arreigado é o pessimismo, que muitos finlandeses vêem na morte a única salvação para as suas angústias. A melancolia é um inimigo mais impiedoso que a União Soviética". O parágrafo transcrito abre o romance e tem o condão de nos deixar boquiabertos: por um lado, o estilo jornalístico, de quem parece estar a transcrever um relatório científico, coloca o leitor em sentido. Virá aí um tratado sobre o "spleen" finlandês? Por outro, talvez o tom didáctico seja o de uma introdução a uma fábula daquelas que começam com o inevitável "Era uma vez..." Cinco páginas à frente, quando um homem de negócios falido e um velho coronel do exército se cruzam num celeiro em plena noite de S. João (para os finlandeses a noite de S. João, o solstício, é um ritual solene, por todos celebrado) e evitam mutuamente o seu suicídio, o tom está encontrado. Unidos na hora que antecede a morte está traçado o destino de uma confraria, de uma rede social: as dos vencidos da vida finlandeses que não querem morrer sozinhos. O coronel Kemppainen, o director de negócios Rellonen e a vice reitora Puusari, que a eles entretanto se juntou, resolvem então pôr um anúncio para que os candidatos a suicidas de toda a Finlândia a eles se juntem. Chovem respostas: velhos, deprimidos, internados em hospícios, místicos, "homossexuais, travestis, masoquistas, mulherengos angustiados ninfomaníacas irrecuperáveis." Arto Paasilinna vai dando voz a esta polifonia de desesperados que se levantam da paisagem finlandesa com um fôlego que aqui e ali coincide com as multidões de descamisados que muitas vezes povoam os romances de José Saramago e que conseguem deixar com a sua passagem, com o seu testemunho pessoal, um sedimento épico de desespero.» Rui Lagartinho

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