MEU PORTO BAGDADE
A Noite é um lugar extremamente perigoso.
Poderia desfiar o rosário de situações
em que tudo acaba por correr maravilhosamente bem,
quando bastaria um grão excedente para correrem terrivelmente mal.
Ontem, o Pub, que tem vivido uma enorme crise de clientela,
esteve estranhamente apinhado e cada humanóide a quem facultei a entrada
a certa altura me pareceu uma bomba deslizando em Bagdade.
lkj
De repente, vi-me na contingência de ter de interpor o meu lombo às balas,
ao caos, à loucura da violência pura, ali amplificada pelo álcool,
pelo instinto recordista em muitos para beber o máximo de cervejas possível
e perder o controlo da língua
e de tudo o mais.
lkj
Tantos os casais que entram juntos e saem disjuntivos,
postos a arrufar insatisfações que só o milagre do álcool verbaliza no pleno furor da zanga:
«Foda-se! Ela que se vá embora. Estou melhor sozinho que a aturar mulheres.»
confidenciou-me, cúmplice, um cliente que não vai a lado nenhum sem o seu revólver.
Ela foi. Ele ficou remoendo qualquer coisa de homicida e triste no seu Whisky-Cola.
As mulheres com homem ou sem homem que passam toda a noite apalpando-me,
tocando-me o corpo, o rosto, as partes, os braços, ajudadas pelo álcool,
como se de repente eu lhes fosse a solução de um ressentimento fundo com a própria solidão,
coisas com que lido com calma quantas vezes suspirando
pelo doce silêncio gemente e o doce torpor húmido,
não dos seus corpos-vulva que devassasse,
mas dos recantos domésticos de onde alimento de Vida e de Literatura
(ó corpos-hera enroscados por mim-caule em cada Texto!)
este meu blogue onde tenho sido o Rei das Vítimas
e o Campeão dos Estéreis Disparos Dolorosos.
lkj
Quando chego a casa, explodindo de tusa e de reflexos,
estou excitado e estimulado de mais para não escrever
ou para não acordar a minha mulher noutra escrita que me urge desflorar.
lkj
Mas na Noite propriamente dita, nunca se adivinha o que sucederá.
Por exemplo, cinco irlandeses, quatro deles terrivelmente bêbados,
que me aparecem à porta e insistem comigo para entrar quando o Pub fechava já,
embora a clientela abundasse por lá nos últimos rituais de conclusão.
De bonés ridículos, olhar e trejeitos trôpegos, tresloucados, esgazeados,
vinham por uma última bebida:
«Just one drink and we'll go!» balbuciavam repetitivos.
Eu dizia-lhes, por duas vezes, em vão, «The Bar is closed. No more drinks will be served.
You must go now», em vão porque, resolvendo arriscar,
acabei por permitir-lhes a entrada a bem das boas contas do Pub.
Depois, com eles lá dentro, tive de furar como um raio por entre a multidão remanescente
para impedir que um deles acendesse um cigarro e gritei-lhe recomendações.
Depois, ao observá-los a pagar, vi e ouvi, os meus sentidos estavam apuradíssimos!,
que pagaram pela bitola grande e por isso mesmo tinham agora farta indignação disponível
para canalizar na minha cara, ao sairem, uma ira que talvez deflagrasse
bem no centro do meu rosto pai de família no limiar da miséria
e do meu bigode experimental de mexicano-Zapata.
E foi à medida que os irlandeses foram saindo, olhos nos olhos comigo,
que as coisas se tornaram bastante azedas.
lkj
Pedi-lhes os cartões e não mos deram,
mas diziam que tinham pago e pago escandalosamente,
coisa de que me tive de certificar com uma troca de impressões com o meu Patrão.
O meu Patrão, no seu aflitivo inglês lacunar e hispânico, disse-me que sim, que pagaram.
Cabia-me recolher os cartões comprovativos, mas notei que seria esse o seu finca-pé
pretextual para partir com aquela merda toda e levar tudo à frente
e já sabemos como são os desfechos de este tipo de negociações duras.
Caguei nos cartões. Bastava-me saber que haviam pago.
Deixara de ser problema meu, mas o disco riscado dos irlandeses insistia:
«No cards, but we've payed.»
Eu queria lá saber! «Ok, then. So you've payed.»
Foi assim, nesta teimosia, já com um conjunto de amigos a guardar-me as costas,
clientes habituais que gostam de mim, mas devem gostar ainda mais de participar
numa boa sessão de esclarecimento em Kung Fu, que, olhares trocados,
nos preparamos para o pior.
lkj
Mas o pior não aconteceu. Não sei que oração, que pensamento, que gesto meus,
e tudo se desbloqueia, os paus caem das mãos, as pedras retornam ao pavimento,
os revólveres regressam-espada às suas baínhas-coldres e os inimigos dão-se as costas.
De algum modo, as coisas dissiparam-se tensas. Fomos cada um para seu lado.
A Noite, essa caçadora assassina de tédios, feriu,
espancou matou e morreu, deixando em coma e às portas da morte
apenas o âmago desorientado desta soma de equívocos
do Amor desencontrado, que é qualquer um de nós.
Comments
Mas tudo fica bem quando acaba bem.
Estou certo que foi isso que reconduziu as espadas às baínhas, as pistolas aos coldres...whatever.
A violência é algo que, a meu ver, é desprezível, só mostra a capacidade de sermos animais, irracionais, tal como o cão em que acidentalmente espetamos um biqueiro porque urinou na carpete, e a incapacidade de fazermos o adequado uso de tudo o que Deus nos deu de mais precioso.. o nosso intelecto, a coisa mais forte do mundo. Abraço, estarei atento.