A VERDADE, NOSSA CICUTA


Numa das postas anteriores sobre a minha noite no Pub onde amealho alguns
trocos a troco de não ser professor ou coitinterromper-me de o ser,
que é a minha profissão, nem ser escritor,
que é a minha grande paixão, deriva e pulsão sofredora,
alguns trocos a troco de nem ser nada mais que porteiro e protossegurança,
um leitor-comentador interrogou-se sobre os efeitos nas pessoas concretas dos clientes
e até do meu patrão, meu amigo, se todos se revissem no que vou escrevendo.
lkj
Conviria lembrar ao leitor-comentador que assim que sobre elas (pessoas e clientes) escrevo,
numa direcção mais compassiva ou mais impaciente, mais humana ou mais impiedosa,
já não são pessoas. Passam a ser personagens, cujos nomes, Todos os Nomes, são fictícios,
a não ser nos casos em que o drama é grosso e a decadência infeliz lhes pede o Nome,
e é o caso, talvez exclusivo, da TóxicoManuela, que é para mim toda uma sinédoque do Porto Abandonado e Grisalho que se vê e deseja para viver condignamente
com a merda de reformas ou de vencimentos que aufere e com os gastos que lhe pesam,
mas também sinédoque antifrástica de Portugal, porque onde existe a TóxicoManuela
existem os outros, essa cascata de omissões
que nos fazem aviltadoramente desiguais em fosso.
lkj
Nunca indiquei ou revelei qual a casa onde trabalho. A casa não interessa.
As centenas de pessoas concretas que por lá param não interessam.
Interessa expôr a insensibilidade, o individualismo, a frieza,
o sofrimento escondido, a oprimência do trabalho oprimente,
a indiferença ao próximo como prática convicta e omissa de quem tem dinheiro,
a Árvore do Caos dos Afectos, a Solidão Dourada dos Chiques e Ricos,
as gorjetas que quem pode dar não dá e quem não pode dar até dá, sinal de que nos Vêem,
a Decadência de Muitos, o gosto de sopear os outros,
o prazer em humilhar e demarcar-se dos outros,
dos homens sós com três brasilerias ou duas eslavas de luxo ao serviço do seu gozo,
os mecanismos de exploração da mulher e da mulher brasileira ou eslava,
o estatuto do imigrante, a sua vida dura e sofredora.
A minha sensação de ser imigrante na minha própria terra, Porto, Portugal.
lkj
Nunca menti sobre as minha emoções, sofrimentos e dificuldades.
Expô-las e arriscá-las na sua crueza e intensidade faz parte do meu programa de escrita.
Mesmo o mais fundo abismo, o mais negro negrume emocional
contêm redenção e aspiram à luz e aí tubo-de-ensaio-me,
mergulho a fundo, arrisco sofrer por mim mesmo e pelos que vejo tombados ou fragilizados.
lkj
Nunca escondi da minha escrita um largo espectro de sentimentos contraditórios,
oscilantes, ambíguos quer sobre a Noite, quer sobre as pessoas da Noite,
sobre a avareza dos que não me vêem nem vêem mais ninguém que eles mesmos,
e não encontram as Pessoas para lá da sua função, estatuto e configuração física.
Fiz e continuo a fazer imensos amigos entre a clientela. É cansativo ser confidente de tantos,
com ternura o digo, mas vale a pena ser o depositário de infinitas histórias de vida
que procuro revivescer por aqui, com a arte e inspiração-prazer que me acometa.
lkj
É mortífero ter o leitor em causa aludido por fim à minha baba de raiva e à porventura necessidade urgente que tenho de medicina: hoje, no início da Noite,
quando as coisas ainda estavam frias,
e nos juntamos para conversar uns quatro ou cinco que raramente falamos,
foi curiosa a confluência em vários tópicos actuais, contra os quais me rebelo,
dos quais sem dúvida tenho raiva e cujos efeitos sofro na pele.
E ali estava eu, que escrevo sobre estas coisas todos os dias, a ouvir
a sintonia dos problemas, o sensus populi dos portugueses comuns, pais de família,
aquilo que velhos e jovens dizem a uma só voz e um deles, um venerável velho empresário,
nada mal na vida, por sinal, não escondia o que sentia:
«Isto é uma pouca-vergonha sermos o país mais injusto e desigual da Europa».
«Fala-se de parasitismo no sector público,
mas não se faz nada para evitar os gastos desnecessários.»
«O Primeiro-Ministro, não é mentiroso, é um aldrabão dos maiores que já tivemos.»
«O concluio Galp e Governo nem aos tolos engana! É a ganância a oprimir o povo.»
«Sou um revoltado. Só vejo injustiças e sofro com isso.»
«A República traíu-nos. Os cidadãos mais exemplares vivem sob monarquias.
As nações mais prósperas e moralizadas são monarquias.
A República sofisticou a arte de roubar ao Povo
e sofisticou-se a administrar danosamente o Estado
contra os interesses e o bem estar da Maioria.»
lkj
Calculo que numa poltrona suave, com a vida suave e tranquila, com o dinheiro a render
e a sobejar à própria sobrevivência pode alguém ser cínico e leviano
com a raiva dos outros pela própria penúria e dificuldades. Eu, por mim, não escondo o que sinto
(raiva ou insatisfação, ternura ou compaixão), o que passo, o que custa o trabalho e a penúria,
também não oculto o que vejo, não douro a pílula quando se trata de expor
a índole alienada e indiferentista aos outros que é a dos portugueses,
índole fatal para o bem geral e para a construção de um País Mais Feliz.
Pensar em Sócrates, em Pinho, em Maria de Lurdes Rodrigues
ou no omisso e De-Papel-Cavaco, é pensar num País Insuportável de Hirto e Desumano.
lkj
E tendo falado o leitor da minha filha, cabe-me ressalvar que a minha filha
inspira-me a maior das responsabilidades quanto ao País em que ambos nascemos:
beber a verdade a largos tragos, a cicuta da verdade, explorar os nichos de verdade,
de procura de clareza e transparência na vida portuguesa, coisa ameaçadíssima.
A minha filha tem um pai que a ama, educa, acarinha desmedidamente.
A minha filha não tem uma máscara inexpressiva e desinteressada por pai,
nem por pai um homem incapaz de sentir o seu tempo
em troca de futebol e respectiva idolatria. Tem um Pai de Carne e Osso
que tem algo a gritar ao mundo e às pessoas com alguma ética profunda,
com vestigial sentido de partilha e de humanitarismo integrador.
lkj
Porque sinto intensamente, sofro intensamente, o que é óptimo
para depois poder escrever desmedido e apaixonado.

Comments

Trutzy said…
It is very exciting to speak to Dio!
Tiago R Cardoso said…
excelente, muito bem afixado.
antonio ganhão said…
Vejo-te como um anjo que desceu à cidade e se refugia na noite. Confidente, apaziguador de lutas quase inevitáveis, observador do sofrimento alheio, capaz de o absorver... Mas nesta ficção qual o teu papel final? Sobrevives à noite, mas sofres com os teus críticos. Qual o teu destino?

Um anjo quando desce à terra não corta as suas asas!
Manuel Rocha said…
Hum....além de escreveres bem, és susceptível !!! Definitivamente agradas-me, pequeno !!!

( Ocatarinetabelachichix )

;)

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