MONOPUTÓLOGO
Ela fazia anos. Chegou só, como sempre, entre as poucas mulheres que ousam sair sós.
No Pub, cantaram-lhe e tocaram-lhe os parabéns e ela, que passa o tempo a sorrir,
sorria ainda mais e deslizava na pista. Já a vi com tantos homens!
Porque ao sair do Pub nunca sai só. Faz-se levar por alguém novo ou de alguma outra vez.
O próximo é sempre o mais importante. E, de facto no final de esta noite,
sairia com um cinquentão, homem simpático e manso,
que me cumulou com uma suculenta gorjeta de um euro e meio,
satisfeitíssimo com o engate e o namoro com a brasileira Jociara.
lkj
No início da noite, porém, Jociara veio fumar pelo menos três vezes cá fora
e, sem me consultar, fez de mim alguém que a ouviria em confissão.
(eu estava terrivelmente mal humorado porque, oito meses depois
todos os trâmites consabidos e rotinados,
o meu patrão resolveu chamar-me agora a atenção
dos meus deveres de repositor de stock de bebidas nos frigoríficos
e de outros meus consabidos deveres,
um stock que antes se renovava vertiginosamente a cada dia e hoje,
dada a recessão de clientela, muito a espaços carece de se renovar, e revoltei-me!).
lkj
Mal falei. Acenava apenas. Mostrava compreender à medida que se desfiava.
No vaivém dança que dança, bebe que bebe, fuma que fuma, retornava ao seu assento
e convocava-me a atenção, prosseguindo a sua enorme narração de vida.
Quem, saindo, nos via ali lado a lado,
tinha incrustado no olhar o que por inúmeras vezes me haviam sussurrado:
«Tão linda. É pena ser puta!»
E por longos minutos, Jociara disse-se.
Disse-se monoassuntando um seu relacionamento prolongado,
que notoriamente a torturava e obcecava.
Falou abundantemente de um só homem. Relatou tê-lo insultado,
mas era só dele, muito mais que dos filhos ou de si e da sua vida, que no fundo falava.
Que estivera num restaurante brasileiro da cidade, de amigos, a festejar,
que bebera champanhe, depois cerveja, depois vinho do Porto,
depois caipirinha, depois whisky, que comera do que quisera
e agora estava ali, entre outras caipirinhas e outras cervejas,
como se nada fosse. Que era feliz e autónoma e alegre e bem-humorada,
mas foi-me passando o amplo panorama ou o vasto arsenal de tecnóloga do prazer.
lkj
Sentou-se. Brandia o cigarro, enquanto dizia das suas coisas numa vozinha de pássaro,
olhando muito para mim e sorrindo-me muito. Mal audíveis as suas palavras.
Quase sussuradas. E foi de cócoras, teve de ser!, que a pude escutar
adequada e compassivamente.
lkj
«Faço quarenta e dois anos. Tenho um relacionamente desde há oito anos.
Estive no Brasil quinze dias e, quando cheguei, vi que ele não me respeitou novamente.
Sim, é aquele gordo que esteve cá daquela vez, aquele barbudo bem humorado.
Trabalha na imprensa e na advocacia. Tem muito dinheiro.
Saíu durante esse tempo em que viajei. Saíu com moças com vinte e dois anos.
Ele tem cinquenta e um. Eu disse-lhe: "Não tens vergonha?! Um homem dessa idade
a sair com moças tão mais novas?! Eu faço tudo pra você,
boto uma lingerie picante só prá você,
faço todos os carinhos e gostos na cama, aquilo que você gosta,
sou eu que lhe esvazio os colhões todos os dias e você me faz isto?!
Não sabe me respeitar?! Eu não preciso de você para nada!
Posso ter os homens que eu quiser, seis homem na semana a quem esvaziar os colhões!
Vá prá puta que te pariu, não quero ver-te mais à minha frente".
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Mas ele um dia me disse, e isso doeu de mais, que tinha vergonha
de me apresentar aos seus amigos porque eu era uma mulher velha.
Isso doeu. "Vá prá puta que te há-de parir, seu gordo de merda, você não se enxerga, não!?"
Eu não preciso dele, não. Tenho a vida feita. Ganhei o meu dinheiro.
Não preciso do dinheiro dele, não. Posso ter quem eu quiser.
Os meus filhos estão bem na vida. Meu filho está muito bem,
não preciso me preocupar. Sou feliz e bem humorada.
No outro dia, disse pra mim comprar um vestido, que ele pagava.
Eu fui. Levei o cheque dele assinado. Mas depois quis saber o preço.
Pode? Um presente, o que eu quisesse e a seguir me pergunta o preço.
Eu disse-lhe: "Você é um canalha mesmo. Guarde o seu dinheiro.
Eu posso comprar o que eu quiser a hora que quiser. Não preciso de você pra nada.
Nem preciso de nada de você." Aí não aceitei.
E fui comprar com o meu dinheiro um vestido.
lkj
Ele não me respeita em nada. Tem casa, comida, tudo o que quiser, e mesmo assim
anda saindo com moças de vinte e dois anos, me mentindo que não é verdade,
quando pessoas amigas os viram juntos e me contaram. Ele disse: "Ah, não sei o quê,
já sei quem foi a bruxa velha que te contou essa mentira."
E eu disse: "Bruxa velha, não. Amiga, alguém que gosta de mim e de quem eu gosto.
Você não presta, não vale nada, seu filho da puta, seu cabrão."
Mas não adiante. Sempre ele volta. Sempre tudo volta ao mesmo.
As outras podem ser mais novas, de furico apertadinho, mas não sabem nada.
Eu conheço ele bem.
Faço pra ele tudo o que um homem quer e gosta. O que ele gosta. Tudo!
Aquele bestão é rico. Tem poder. Tem acesso à imprensa como jornalista
e, com o que ele sabe como advogado, deixa com medo muita gente. E isso é poder.
Mas não pode comprar amor, carinho e prazer como só eu lhe dou.»
lkj
Três pedaços intercortados de conversa. Conversa rompida pelo meu trabalho,
pelo seu impulso para dançar e beber e rir, e mais adiante retomada.
Jociara ria e gargalhava, enquanto amargamente se narrava.
Cada pedaço reatado cada cigarro que beijava.
E a compaixão tomou conta de mim. Saber que há uma rede-prisão invisível e bem real
constritiva, mantendo captiva Jociara.
Só de cócoras se pode compreender.
Só de cócoras se possa talvez reencontrar a noção perdida de 'próximo',
num tempo em que todos no fundo se fazem abissalmente distantes.
Comments
Brilhante, mais uma vez brilhante.
Meu caro Joshua
(porra! não sei o seu nome)
estas suas três linhas (é a segunda vez que aqui deixa comentários encomiásticos)merecem (quanto mais não seja por agradecimento)que, pois então!,lhe diga umas tantas coisas (não posso evitar considerá-lo, em princípio e até prova em contrário, um amigo). Então como amigo (e não lhe assiste o direito de colocar em causa a autenticidade do que digo)hei dizer-lhe o seguinte:
(Ponto Prévio: estas suas três linhas bastavam para escrever um livro...tal é a quantidade de questões -implícitas - que suscita)
1 - os meus sinceros agradecimentos;
2 - acreditando acho-as um exagero pela razão simples de que não sou nenhuma "luminária"(esses - e porque não o são, de facto, é um dos meus objectivos. Tentar demonstrar que dentro dos embrulhos só lá está merda. E não é por haver merda que não haja muito quem goste de chafurdar em merda e por ela atraído seja);
3 - dizer-lhe que exactamente por algumas das razões que aponta e que o fez levar-me ao céu são, em rigôr, algumas das razões que, ao invés, fazem com que a maioria "nos" mantenham no purgatório (ou no limbo se quiser) ou então os mais activos, nos atirem ao inferno. Como vê a diferença é quantitativa. Nunca qualitativa.
4 - o que você constata ou se não constatou pelo menos denota que apreendeu qualquer coisa- disfunção, incongruência, descontinuidade, aparente anomalia - quando refere que não sabe como é que "blogues da primeira divisão não...etc"... ora seria por aqui meu amigo que eu começaria a dissecar retirando todas as ilações (e mais uma vez o digo, escrevo, dizendo-o a si):
a)aí radica um dos mais graves digo mais, é mesmo a génese dos rodilha em que nos enleámos e da qual não saíremos (isto dava para outro livro) do ponto de vista sociológico em todas as suas cambiantes e correlativas abordagens - psicológica, histórica, demográfica,geográfica, económica, financeira,social,cultural,...: a nossa intrínseca pequenez. A bogosfera nacional é um muito fiel espelho de parte substancial da nossa sociedade. Em tudo, nos escritos e nos "tiques" dos que escrevem (não me estou a pôr de fora)
a)(também está escrito aqui no Pleitos... algures - no arquivo)- vamos ficar (você é inteligente por isso sabe o que fica por dizer)por apenas um:AGENDA!eu não tenho agenda. Acredito (sinceramente creio) que você não tem agenda. Quem tem agenda não diz, não escreve o que escreve e se o faz não o faz nos termos em que o faz. Ora acontece que (vou fugir da apreciação, dos juízos de valor e a processos de intenções por não ser necessário)o Pacheco Pereira tem agenda, todos os que fazem a 4ª República têm agenda,os do 31 da Armada tem agenda,o Zé da Grande Loja tem agenda,o Câmara Corporativa tem agenda e têm agenda o João do Portugal dos Pequeninos, o Balbino Caldeira do Do Portugal Profundo... dessa 1ª e 2ª divisão, a esmagadora maioria deles. Não têm agenda o Dragoscópio, o Braganzza Mothers, o Hekate, o Combustões.Falar da agenda (seria às tantas outro livro)não vale a pena.
Mas já agora explicar-lhe-ei onde e como encontro a explicação para enteados e filhos:
1 - em primeiro lugar na potenciação que gera a pequenez física no pior que a natureza humana, depois
2 - a indisponibilidade em pagar os custos que, ser tido por "filho", tem:
a) aturá-los e assentir mesmo que não se concorde; b) bater palmas quando temos vontade de patear; c)silenciar, ignorar, fazer que não se percebe, fazermos de parvos;d) tratá-los com deferência quando merecem um murro no focinho, dobrar a cerviz e, no fim da linha,
dispôr-mo-nos a servir de escadote e/ou fazer de degrau na esperança de que o movimento de inércia também nos catapulte a nós, um degrau acima.
Percebeu?!(acho que sim que percebeu) mas não o deixo sem lhe, com a maior das considerações e estima, dizer o seguinte: lastimo por si a sua situação concreta e mais do que isso lastimo cada vez que lhe leio a confissão ou melhor dito, a exposição das suas dependências.Estarei enganado?!não creio mas estou em garantir-lhe que a probabilidade de alguém mais próximo de si ou não, não interessa!, se comprazer (aquele lúgubre e mórbido "gozo" que as pessoas pequenas têm com o mal ou menos bom, alheio)com a situação é de longe muito maior do que a probabilidade de alguém de si se aproximar para lhe dar um dedo que seja. O conceito do "deve e haver" contábil desta gente faz-se assim (erradamente) porque não conhecem a "teoria dos rendimentos decrescentes" ou por outro lado " do incremento da riqueza" : se comunidade é composta de A e B e C e o lugar de topo fôr A, o B e o C digladiam-se até a morte por ocupar o lugar de A. Esquecem que A sempre que B e C se digladiam ganha poder, força, ascendente por isso o seu lugar cada vez está menos ameaçado o que quer dizer que B e C cada vez menos têm menos possibilidades de lá chegar. Por outro lado A sabe que se cedesse algo a B e C seria um A ainda maior fazendo de B um grande B e de C um grande C mas não o faz (é o efeito multiplicador).Mas não o faz. Porquê? em tempos acreditaram que era na marquesa de Freud que tudo se explicava. Alguns já perceberam que nem tudo mas de qualquer modo lhe garanto que na marquesa de Freud se consegue explicar ainda muito. O que quero dizer com isto? quero dizer-lhe que a grandeza humana é incompatível com a sensação de poder, a conquista do poder e/ou a sua manutenção e por consequência,o exercício do poder.
Sinceramente
um abraço
David
P.S.: quer uma prova de algumas coisas quelhe acabei de dizer. Veja!
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Porquê?! explique-me!!
Caro Joshua
Agradecia que, na medida do possível, pudesses divulgar entre bloggers e outros amigos a aventura BTT que está em "gestação" para a Via Algarviana - entre o Sotavento e o Barlavento Algarvio Alcoutim/Cabo S.Vicente - em datas a anunciar para o próximo Verão 2008.
Vide em .:
http://sol.sapo.pt/blogs/bluewater68/archive/2008/05/15/Via-Algarviana.aspx
Grato pela colaboração
Um abraço com história
"Só de cócoras se pode compreender."
Vem-me à memória o Nuno Gomes aos saltinhos no anúncio da TMN e leio:
«Tão linda. É pena ser puta!»
É assim a força da crónica da vida.
Conselho implume: lê o Taxi do José Couto Nogueira, não tem a ver com a tua escrita mas existe muito deste livro no que tu escreves.
Excelente. Uma história de vida como tantas, vivida, sofrida e fodida.
Autêntica. Bem escrita. Parabéns.
Abraço