IMPONDERÁVEL MEDIDA DO SÓRDIDO

«A "edição de aniversário" deste jornal [o Público] deu uma triste ideia do que é hoje (ou sempre infelizmente foi) Portugal. Uma sondagem comemorativa perguntou aos portugueses se achavam que o primeiro-ministro tinha mentido "deliberadamente" à Assembleia da República, quando declarou que não sabia se a PT queria comprar a TVI. Para meu espanto, 59,8 por cento responderam que o primeiro-ministro tinha mentido. Pior ainda: 70,4 por cento pensam que ele mentiu "sem qualquer justificação". Mas, como se tudo isto fosse um caso sem qualquer importância, 54 por cento dizem que há "condições" para o Governo continuar; e 40,6 por cento dos que tencionam votar vão votar no PS, que Sócrates reduziu a um pau-mandado. Ou seja, afinal o "inaceitável mentiroso" serve ao país como primeiro-ministro. Não se percebe qual é o cálculo. Imaginam os portugueses que Sócrates, tirando o caso especialíssimo da TVI, nunca lhes mentiu antes sobre nada? Ou esperam que, fora esse lapso único (e, por isso, de certa maneira desculpável), não lhes torne a mentir? Talvez nem uma coisa, nem outra. É possível que os portugueses considerem a TVI um assunto tão insignificante e obscuro que enganar o Parlamento sobre o que se lá passa não diminui Sócrates no fundamental. Mas quem lhes garante que Sócrates, não respeitando a verdade sobre a TVI, a respeitará, por exemplo, sobre o Orçamento, o défice externo, o défice interno, a dívida, o desemprego ou os salários? Os mentirosos observam uma hierarquia inflexível da mentira, em que é tolerável mentir sobre a TVI e não é tolerável mentir, por exemplo, sobre a saúde e a educação? Admitindo que sim, resta um problema. Se o primeiro-ministro mente, com a agravante de mentir à Assembleia da República, qual de nós não fica autorizado a mentir a torto e a direito, quando lhe convier? Patrões, trabalhadores, jornalistas, médicos, engenheiros, quem lhe apetecer, a quem lhe apetecer e pela razão que lhe apetecer? E é concebível que uma sociedade funcione na base de uma desconfiança recíproca e total? Ou, nesta matéria, gozam os políticos de uma espécie de privilégio de extraterritorialidade? Não me esqueço que Blair e Bush provocaram uma guerra com uma extravagante série de mentiras, nem que os dois foram reeleitos. Mas não contava que Portugal seguisse com tanto zelo esse precedente. Se Sócrates, de facto, mentiu, como julga 59,8 por cento do país, não correr com ele de S. Bento é um vexame, e um vexame pessoal, para qualquer de nós.» Vasco Pulido Valente, Público

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