BIOLOGIA


Se eu gastar toda a fauna
dos caracteres que pastam e caçam
nas savanas do meu poema,
eles, que aspiram à glória de serem reunidos e ditos,
virá finalmente
a extinção em massa do haver o que dizer?
Uma gripe que acometa a ave aquática
que existe por ser dita, vago pairar de gaivota,
e depois se propague pelos bichos
do que eu disse,
uma gripe fará a mortandade da melodia da palavra
perante tanto ruído que nada contempla,
nada vê - cegueira que mata cerce o cerne?
O meu poema é a abundância floral da vontade
irrompendo do mais longe dentro,
é a abundância da abundância que quer jorrar,
é o ilimitado do ilimitado que aflorará virtual e verdadeiro
página a página,
mesmo entre os muros estúpidos
do que a arte deva ser para os especialistas estúpidos
estupidamente competentes nela,
estupidamente bem-escreventes sobre ela.

Amo o vírus do dizer a multiplicar-se microbiano,
entre pontos, entre vírgulas, entre os espaços das estrofes
frases mudas, gases donde, por acreção, eclodem os meus sóis,
e neles o pasmo do pasmar alheio,
pasmando-se comigo-texto que comigo-texto me pasmo a sós,
tão a sós,
gancho, que puxa e agarra ou falha,
anzol de isca grande imordível por dentinhos tão pequeninos.

No húmus do meu poema aumenta a temperatura,
exala-se dele um gás saudável, ígnio:
deixem-me que lhe chegue o fogo
e me emocione aqui e ali, acolá e além,
por todo o ecossistema do meu texto,
eu, que sou caloroso ao perto,
eu, que friamente me considero cheio de calor humano e de amor para dar,
quando visto e conhecido de perto,
tu, tu e tu, não me darão razão? Claro.

Mas o meu poema-bicho é coisa de atear.
Tem de ser kafkiano banho no rio congelado.
Tem de ser disparo e facada,
tem de ser ponteagudo, coisa aguçada atirada,
com raiva,
à normalidade neutra de não pensar,
de não sentir que se vive,
de não sentir que se morre.

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