PTERODACTILONIANA PAISAGEM


Sabor ferroso a sangue. Ferida.
Jorra. Provo-o involuntariamente, quente, meu.
No Céu, onde, com umas nuvenzinhas róseas muito a nordeste,
a aurora lentamente se afoita, rósea, áurea, sanguínea,
vejo o gume vestigial de uma lua recedente,
muito a prumo toda dentro dum Azul Esbranquiçado.
Acomete-me de repente sentir-me somente um homem só,
pterodáctilo da escrita e do sonho
com a ponta dos meus dedos-asas,
ao alijar só assim toda a espécie de sofrimentos.
lkj
Outros pterodáctilos, esses emplumados, cruzam os céus, centenas, milhares deles,
níveos músculos alados nas alturas oscilam nos recessos mais recônditos dele.
Vou pela auto-estrada e olho-os, hora de ponta celeste das gaivotas,
voando em desencontro, enquanto piam celebrativas, deplorativas.
Têm o Rio e a Cidade Iluminada por baixo, eis a Alfândega e a Ribeira.
Rodando sobre a Ponte, sinto-me já perto de casa.
É o triunfo das Aves e provavelmente da Grande Gripe
prodigamente esparzida do Alto.
lkj
Afinal, um casal meu amigo lá casou, mas não foi por eles que o soube!
A brisa matinal é o melhor perfume do Cosmos. Sangro ainda.
Intromete-se-me o meu sangue com o seu paladar e dói-me esse casal de amigos agora casado
sem que mo anunciassem, como seria de esperar, ou afinal não seria nada de esperar.
Pterodáctilos por todo lado nestes Céus Litorais. Imobilizo o carro. Cheguei ao meu lar.
Afinal, todos os meus amigos me traíram! Pardais, melros, em montePio poisam nas ruas,
o ruído da fome avícola avulta pela minha janela automóvel num cagaçal festivo e faminto,
pombas, rolas, tudo é das aves, o fresco amanhecer é todo delas.
Afinal, todos os meus conhecidos me desconheceram. É do sono que penso nisso.
E toda a gente outrora próxima me desagendou das suas agendas.
Não os encontro. Nunca. Não lhes interessa encontrar-me, ver-me. Ouvir-me.
lkj
Sou culpado de ser eu mesmo. Tornei-me-lhes evitável, assunto muito cochichado.
Que ando muito irado, que estou muito diferente, que agora sou deselegante,
desagradável, feroz, temível, cheio de palavras serrilhadas,
afiadas, envenenadas, maledicentes, cozidas e cerzidas de raiva e baba rebelada.
Que tenho agora demasiado inconformismo e rebeldia para ainda lhes parecer
o mesmo indivíduo cordato e cristão.
Que agora tenho demasiado Poema
e demasiado longa Narrativa para lhes ser inteligível e interessável.
Falhei na Indústria Conserveira dos Amigos, esse enlatado de luxo! E estou só.
lkj
Não quer dizer que esteja infeliz. Não. Simplesmente estou só,
só como Fernando Pessoa a sós com a sua própria genialidade privativa e por desabrochar
nos orgasmos de aclamação, de publicidade e de triunfo póstumos,
só como certos presidiários inundados de cínico e do clarão desapontado com a Espécie,
só como boa parte dos velhos, as mais crassas vítimas de Portugal
que politicamente e socialmente e individualmente
vai praticando com eles um cruel e asqueroso Geronticídio
nesses Lares da Terceira Idade, onde certas Tias
gerem proventosamente a idosa baba, a sopa idosa e o silêncio pesaroso ante-mortem,
Geronticídio também nesses casebres miseravelmente degradados das cidades
onde se escondem e escondem todas as faltas de pão e saúde.
Geronticídio porque as partilhas, as contas bancárias, as jóias e os ouros
vêm certos chacais filhos-cabrões-chulos de seus parkinsonianos pais alzeimerianos
conflituar entre si e exigir antecipadamente
como é próprio de Abutres Apressados.
lkj
Estar só é estar só higiénica, heróica e convictamente!
lkj
Ninguém nas ruas. Ninguém em lado nenhum. Só aves, pios, a fome de rato
das aves pela manhãzinha. Tudo está deserto. Já não tenho amigos!
É isso. Não os mereço omnipresentes e invasivos.
Não me merecem. Dois ou três tenho, vá!, que me pagam associativamente
um jantar quando me vêem uma só vez e pela primeira vez na vida
porque anelam perceber, cara a cara comigo, se só em bytes instilo vinagre
e não no trato pessoal, onde tresando a amor e ternura.
Tiram a prova jantarina e depois partem tranquilizados. Amigos!
lkj
Amigos talvez só mesmo um, extraordinário cantor e músico, e que por vezes me
encontra a malucar umas raivas, umas tristezas e umas apatias
à porta e em serviço do meu Pub, onde ocasionalmente toca,
e por isso mesmo vem, intuitivo, todo sorrisos antecipando o próprio humor-rebuçado,
a contar-me aquelass anedotas certas, a fazer-me rir muito.
Ele, com quem é sempre muito bom conversar,
ele, a quem é bom escutar e sentir-me por igual escutado
e falar do que calhe, nossas filhas, nossas mulheres,
do trabalho, desta amizade da boa.
lkj
Mas, pronto, falhei de ser inteiramente convencional,
não tenho sucesso por que me procurem inquisitivos,
e falhei ainda mais de ser inteiramente social, porque sou mais interiorístico
e perdido em saberes, textos e palavras.
Preciso de amigos que me amem e aceitem apesar disso e para além disso
desconvencional e associal.
Não preciso de amigos que se gabam de me conhecerem bem
somente para melhor me desmoralizarem e menoscabarem, Amigos da Onça e de Peniche.
Fui espremido, ponto negro social espremido do rosto amistoso, por vizinhos e conhecidos.
Fui desolhado e tresolhado, riscado e emendado, deslargado e emprastado contra a parede.
Fui metrocado e metralhado: não sou sequer digno de um talvez ou de um moche a mim.
Que eu não tinha o direito de me tresmalhar e me tornar um Pródigo Guardador de Porcos,
dizem eles e pensam ainda mais que o dizem, os Porcos das Incertezas,
os Porcos do Labirinto da Vida, os Porcos do Desconforto e da Luta Acérrima
por Pão e Dignidade, rasgada a cortina Matrix com que afinal Tudo nos Mente.
lkj
Os meus amigos, vizinhos e conhecidos, afinal casam e não me dizem nada.
Os meus conhecidos, vizinhos e amigos, afinal têm planos muito honestos e cumprem-nos
e vão todos aos aniversários e casamentos uns dos outros sem mim
e afinal são mais amigos uns dos outros e mais sensíveis uns com os outros que eu com eles,
que não vou a casamentos nem a aniversários porque não sei ou não posso ou me esqueço.
E ignoram informar-me, e preferem ofertar-me com a sensação de que lhes morri.
Ah, então é isso?, estou-lhes morto?!
E não poderia jamais escrever o que penso sem que lhes morresse?
E não poderia afinal dizer abertamente que acredito em Cristo-Deus
sem que lhes morresse?
kljh
Pois então já me lhes fizeram o funeral e nem para ele me convidaram?
Não é justo. Na verdade, isso não é nada aceitável.
Não deixarei de me queixar à Entidade Reguladora Amizade da Boca para Fora,
e à Comissão de Farra e Convívio Natural entre gente que mutuamente se viu o cu.
Vou mandar vir a ASAE inspeccionar essas instalações venosas e canalizações
coronárias com muito mau hálito e preocupante colestrol espiritual.
Então eu aqui, muito sozinho, ignorado e cuspido, sem saber de casamentos,
e vós, aí, afinal a murmurar de mim e a tecer exclusões cirúrgicas e silêncios sornas?!
E querem que eu vos perdoe essas habilidades sabiamente engendradas?
lkj
Francamente, amigos, vizinhos e conhecidos, não vos explicaram que murmurar é feio?
Murmurar é como influenciar à boca das urnas. Vício filho da puta!

Comments

Joaninha said…
Disparate!

Sozinho não estás!

Mas escreves melhor ainda quando estas zangado ;)
Quanto aos peseudo amigos, pseudo desamiga-os, amigos desses só ocupam espaço na agenda.
Hummm estou é a ver que és cá dos meus, esquecer aniversários é a minha especialidade :)
O que diferencia o amigo do "outro" é essa capacidade de ouvir e de ser ouvido, independentemente se isso se processa à mesa de grandes jantares, de tainadas em que, a medição dessa (suposta) amizade é como uma rua íngreme, pela qual caímos e nos esmurramos todos, cada vez que, das duas uma: ou nos empurram esses "outros"; ou não estão lá para nos dar a mão para que não caiamos.
O amigo está. Sempre. Mesmo numa risota enquanto se come uma sande sentado em cima de um capot, a ouvir qualquer lixo que esteja a passar numa rádio, enquanto a cola se nos escorrega das mãos bezuntadas com maionese, isto é convívio. Verdadeiro, genuíno e sentido.
O resto...parece-me, para não dizer asneiras...fezes.
Por isso, falsos amigos, que se dirijam à "meretriz que os deu à luz.."

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