A HIPATIA LACERADA
Jazes,
já não gemes,
já não sopras,
e já não sangras.
Se te matámos
foi por esta bífida guerra maniqueia que travamos,
mulher cadáver, reduto tenebroso!
Abrir-te, fender-te, revolver-te as entranhas foi justiça suma,
foi justiça lapidar-te e que agora a alma se te evole,
evanescente marinha espuma
e no inferno se despenhe.
Onde pára a tua sedução apolínea,
agora de fronte despedaçada,
quebrados dentes, nariz afundado,
ó aberração fêmea?
Só mesmo pelo demónio te movias.
Diz-nos, diz a estas lâminas que te desmembram,
se continuarás o centro da Alexandria, urbe abjecta,
assim desfeita?
Diz-nos se agora de toda a terra virão os ilustres
só por te ver e ouvir, prodigiosa mulher amestrada
a papaguear matemática,
a filosofar aristotelismos, a ridicularizar
na mais rotunda e errónea retórica o martírio dos santos?
Olha para ti,
agora que se te seca o sangue nas curvas dos cabelos,
agora que os teus vítreos olhos se te embaciam perdidos
agora com esse corpo enegrecido e teus membros pendidos,
antecipação pacificada, festiva, desse bolor verminal, larvar,
que já te lambe.
Eras tão altiva,
tão cicerónica e pagã,
tão vaidosa e forte,
insubmissa,
sabias tudo, tudo te perguntavam e pedante respondias com a espada da tua língua...
tão bela e doce nessa voz certeira de Atena deusa impossível...
E agora morta, tu, mulher insulto!
Vê como a soberba do teu discurso
é agora somente a tua língua arrancada
e desta mão pendente.
Abominamos-te, Hipatia, não chega extinguir-te,
só o teres existido fede a demo
porque a tua impureza era resistires
à única Via pela torpe calúnia da equidistância.
Repara: Cristo triunfa por todo o lado, os homens mais sábios vergam-se-Lhe rendidos.
E tu? Por que O recusaste, sendo brilhante?
Como O negou a tua inteligência penetrante?
Por que Lhe resististe, se ninguém, nem império, nem reino, nem senhor, nem escravo, Lhe resiste?
De ti a memória será ténue, como a de todas as mulheres,
seremos nós os escribas machos da história toda.
Mas a Ele submetem-se-Lhe um a um, todos aderem à Via do Senhor.
Que fazias, perdida nesse amor perdido às disciplinas,
aos mecanismos astrolábios, beiços do Diabo,
desdenhando de haver n'Ele somente a salvação?
Louca!
Não te perderes como devias no Cristo é toda esta ira que te sangrou!
E foi pouco arrancar-te à vida como um cipreste ao solo rochoso,
e abrir-te, rasgar-te, macerar-te
(rotina de milhares de reses assim tratadas por sua carne e peles esticadas
pergaminho).
Hoje pereces tu, um dia os rolos
todos da maldita biblioteca
e do museu maldito
por arder, ressequidas ervas
no caminho.
Comments
Hipátia de Alexandria
Fiquei siderada com a leitura deste texto, e espero ver um tempo de mudança...
Pode matar-se em nome do humanismo mais delicado e respeitador, Hipatia. Pode matar-se em nome de valores de entrega e respeito absoluto da alteridade, quando há uma lógica de poder e afirmação pelo meio.
Importa despertar, mediante um tremendo choque poético, a revalorização da liberdade, do respeito pelo indivíduo e que os preciosos valores que damos por adquiridos sejam vistos como cristais quebradiços.
Hoje o problema da cobardia também se coloca para fazer face aos que abusam do seu poderios ou do seu ódio artesanal escudado pelos mesmos inocentes: o mundo desdobra-se em condenações morais, mas não tem capacidade de interposição e desarmamento.
É preciso agir por esse tempo de mudança, tb.
abrax
RF
A violência, o extremismo, venha de onde vier tem de ser denunciado, reduzido ao ridículo.
Vive-se hoje a intolerância como um clima de base em países, em zonas inteiras.
E mesmo sociedades desenvolvidas elegem líderes que vão pela via das armas para pôr cobro às armas.
Há outro caminho.
Através de acções conjuntas, virtuais por que não?, poderemos pressionar governos, grupos económicos (alheios a qualquer ética porque subordinados ao lucro) a mudanças claras nas leis e nos direitos das pessoas em certos países.
O teu blog já está a fazer mossa no Vaticano, em Tel-Aviv, nas terras do Tio Sam... Sei lá se no Além... haverá eco também!
A guerra tem catalizadores vários: traficantes de armas, de almas, de indulgências...
Essa combustão gigantesca tem combustíveis humanos e comburentes divinos. A lucidez está entre parêntesis, o ódio é um denominador comum e ... os inocentes elevados ao expoente do martírio... BASTA! Este Koffi Annan
está atado de pés e mãos... não passa de um cadáver adiado...
Da mesma forma, interessa aos EUA e ainda mais a este Sherife do mundo, Bush, um Kofi Anan anão, simbólico, manso, inócuo.
Assim vai o mundo. Teologalmente falando, Ele terá efectivamente a última palavra.