O ORÇAMENTO É UM FINGIDOR

Não me conformei, mas habituei-me ao desemprego e à intermitência
da minha função e actividade docentes com as revoltas e as dores de muitos partos.
A cada ano, o seu parto difícil. Custa-me muita coisa, mas o pior de tudo
é a sensação de triunfo desse bulldozer que é o chavão-panaceia 'tecnologia'
em detrimento do carisma e da empatia, da humanização tranquila do Ensino
que, a coberto da Reforma reducionista e redutora em curso,
se desumaniza, impessoaliza, regressando ao azedo reduto
só das tensões do mais diverso tipo.
lkj
Desde há pelo menos doze anos que me sinto
um sacrificável do Orçamento Geral do Estado, que joga e artificializa,
por esta altura, a não necessidade do meu contributo, para me chamar mais adiante,
passada uma semana ou duas ou três para um lugar
vago há pelo menos dois ou três meses. Depois há a possibilidade
de ocupar temporariamente um horário e ficar meses,
senão semestres ou um ano lectivo inteiro no desemprego.
No meio de tudo, as consequências psíquicas de não ter chão,
ano após ano, após ano. Fico com os nervos em carne viva
e passo a desejar uma espécie de libertação de todos os constrangimentos
e contingências da profissão, tal como ela está,
quando o Estado gradualmente deseja alijar de si a Educação, esta responsabilidade
e esta tarefa, relegando-a para estruturas privadas ou privatizadas,
convénios e situações mistas, hybridas, e em que a figura do Director
se confundirá com a do gestor dentro do paradigma moderno
do poder discricionário = a qualidade e a produtividade chinesas,
ou seja kitsh, perda da qualidade, hipermassificação, iliteracia técnica,
literacia meramente formal, com diplomas automáticos,
farinha-amparo, instantâneos.
lkj
Não sou o único enredado nesta armadilha
de que me desejo libertar e autonomizar, fortalecendo a minha posição individual
contra a maré que amesquinha e humilha a nobre e fundamental função docente.
Somos muitos a sentir que ensinar perdeu encanto e não tem mais a tutelar-lhe
o benefício da dúvida, o inquantificável da função semeadora do semeador
que não controla a eclosão ulterior do ensinado, embora a fomente com toda a paixão.
Porque na foz do processo, tudo está fatalmente determinado,
todos os sucessos e melhorias, todos os resultados positivos,
todos as remediações e remendos branqueadores das estatísticas para inglês ver,
todo o sucesso de pacotilha, tão falso e oco como as políticas que o exigem
e tanto pressionam por que se dêem, e tudo condicionam por que se dêem,
para além do mérito efectivo de cada indivíduo
dentro do chamado público-alvo, os alunos.
kjh
O Orçamento é um fingidor. Os seus agentes e actores fingem completamente,
alimentando a confusão geral, o ódio fácil aos docentes, o estigma sobre a classe.
Em face do clima tóxico que paira e faz o cerco odioso aos professores,
empregados ou desempregados, efectivos, semi-precários e precários,
o que é preciso é resistir, denunciar, eliminar pela razão, pelo brilho e pelo saber,
os argumentos grunhos de quem liquida e apoia a liquidação
do valor intelectual e técnico de pessoas concretas,
praticamente os únicos e verdadeiros construtores de um Portugal Maior.
kjh
Quanto a mim, o que me é libertador é apesar de tudo reerguer-me e ser múltiplo,
flexível, assumidamente polivalente, sacificadamente adaptativo,
capaz de me desdobrar e encontrar toda a espécie de alternativas de trabalho,
mesmo enquanto exerço e posso temporariamente ser professor:
foi o que fiz durante parte do ano lectivo findo.
Ensinava de dia, assumindo um horário completo, e, durante a noite,
trabalhava como segurança-porteiro, num Pub portuense,
acumulando tarefas, fazendo os sacrifícios necessários e desnecessários por dignificar
a vida da minha família, compensar os enormes custos diários da docência
e aprender, conforme de facto aprendi, na carne massacrada,
de que massa civicamente insensível e socialmente indiferente
são feitos os portugueses da Noite e os portugueses do Dia.
lkj
Symbolos disso? Os bêbados que aturava e apascentava pacientemente à Noite.
Os cretinos desprezivos, medíocres, colegas convencidolas tesos dentro do seu estatuto,
auxiliares da acção educativa e outros leigos, todos eles enclavinhados
nas suas pequenas caçadas pessoais e filtros avaliativos da qualidade alheia.
lkj
Não posso esquecer, porque doeu, uma pobre Auxiliar da Acção Educativa,
bolas para a designação pomposa e extensa!, encharcada de álcool,
cambaleando pelos corredores, mal disfarçando o seu alcoolismo,
mal disfarçando que cambaleava por entre alunos ferozes e difíceis,
sob a compreensível condescendência dos responsáveis de essa Escola.
Ninguém está livre do desânimo nem da degradação por causa de.
Que ninguém ouse falar dos professores como 'eles'. Esse 'Eles' não existe.
Todo aquele que em Portugal é gente, vendendo ou não vendendo o seu trabalho,
tem uma coisa em comum para efeitos administrativos e aritméticos em sentido bruto:
é um número e é um problema útil para ser o mais ignorado possível, dentro do possível.
lkj
Entre os mais de quinhentos mil desempregados portugueses
e os demais portugueses activos e empregados há apenas um ténue,
muito frágil e duvidoso filamento de solidez que possibilita a alguém cantar de galo.
Todos sofrem, todos morrem. Todos podem perder. Ninguém está a salvo.
Ninguém está ou estará orgulhosamente só, firme e seguro no trabalho o suficiente
para escapar fedendo da miséria e do fosso cavado onde se atolam os demais.
O mal dos outros degrada e contagia de errado e deprimência
o bem de que exclusivamente alguns se apossam,
explorando desalmada e avaramente pessoas a vida inteira delas.
lkj
Por alguma razão, na Europa, os portugueses são as maiores vítimas,
para além das mais variadas formas de injustiça e de logro das Administrações,
da injusta e abissal desigualdade retributiva, política mentirosa de décadas.
Por alguma razão, um Rui Nabeiro é um caso raro de empenhada responsabilidade
e sensibilidade social e um exemplo quase nada seguido em Portugal.
Comments
Abraço
Ora merda... E ainda nem começou mais este ano...
Desejo sinceramente que a sua vida mude para melhor, bem como a vida de tantos colegas de profissão no desemprego. É só o que me resta dizer.
Abraço