PUB - ZÉ BOGART, O POLÍCIA E A ARMA

Coisa impressionante de observar, durante todo o tempo em que ali trabalhei,
foi a fidelidade viciada de um homem à frequência do Pub
ao mesmo tempo que, com paixão, verberava e insultava entre dentes
tudo o que havia a insultar e a verberar no meu ex-patrão.
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Polícia desfardado, sempre com a sua pequena arma disfarçada num ponto do quadril,
tinha o ar e a fisionomia de um perfeito bogartiano com pronúncia transmontana,
sobretudo quando vinha fumar, encostando-se à parede de vidro exterior,
os seus cigarros em estilo naquela cisma oca, certamente ambos, estilo e cisma,
muito ensaiados. O Zé Bogart foi, aliás, o ser humano que mais vezes vi encostado,
desenhando com as paredes e esquinas aquele k natural.
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Duas mulheres quarentonas rodopiaram em torno de si ao longo de esse tempo,
o tempo em que lá estive e pude notá-lo.
o tempo em que lá estive e pude notá-lo.
Inicialmente uma, que ele procurava descartar desesperadamente e nem sabia bem como,
que o procurava e abordava sofredoramente no Pub e,
embora insistindo muito com ele, por que reatassem, sei lá!, as burocracias amorosas,
que envolvem sempre aquelas discussões intermináveis e reiterativas
obliterando sempre o essencial: tudo «acabou».
Por isso, ela acabava sempre por sair dali só, agastada, humilhada e sofredora,
até ao momento em que resolveu parar com tais cenas, tal marcação rente,
e desaparecer dali, afinal, por exaustão amorosa seductivo-sexual.
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A outra mulher, conquista mais recente e feliz, marinada
e combinada com os restos da anterior,
era pelo menos mais risonha com aquele espacinho entre os dentes frontais superiores,
perna porcina, andar matador de toureiro sem muleta,
perna porcina, andar matador de toureiro sem muleta,
e foi a tal que ele alegremente apascentava enquanto lhe interessou e apeteceu.
Nela encontrou, na verdade, a gaja ideal
Nela encontrou, na verdade, a gaja ideal
para emparceirar consigo no hábito de, encostado ao balcão,
com a caixa de cigarros como tampa sobre o seu copo de whisky,
observar e chasquear de toda a gente.
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Era com esta mulher argumentosa em seios e nádegas, nariz empinado, cabelo curto,
de uma pose a aspirar a classe, e que disso convencia por uns segundos,
até que falasse, fazendo escorrer modos broncos e uma grunhice da Idade da Pedra,
era com ela, dizia, que ele dançava todas as noites,
perdendo-se ele nos seus fartos seios pois a sua cabeça grisalha desaparecia neles,
literalmente desaparecendo também todo o seu corpo policial no corpo dela,
maior que o dele. Com a mão direita, afagava-lhe ela artisticamente os genitais,
disfarçada e subtilmente, naquela penumbra, entre a massa de gente igualmente colada.
Por ser mais pequeno que ela, tinha o braço esquerdo bem levantado e esticado
e a sua pequena mão na mão dela maior, e os dedos esticados como espinhos de ouriço.
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A dança do Zé Bogart era digna de riso e eu disfarçava bem o cómico daquilo,
porque o homem tinha um conceito bailarino pouco menos elaborado
que o dos pisadores intemporais de uvas no Douro,
quando o mosto lhes dá pelo início das pernas,
a dois dedos dos genitais: Bogart ora levantava uma perna,
quando o mosto lhes dá pelo início das pernas,
a dois dedos dos genitais: Bogart ora levantava uma perna,
ora levantava a outra, numa cadência câmera-lenta de preguiça amazónica.
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Não tinha ele grande capacidade de argumentar sem inflexibilidade fosse sobre o que fosse
tornando eu a iniciativa de conversar com ele ou de acolher a sua iniciativa,
situação bastante penosa para mim. Desabafava imensas razões de queixa
da gestão do meu ex-patrão, do cansaço com que abominava os seus desempenhos
da gestão do meu ex-patrão, do cansaço com que abominava os seus desempenhos
pianísticos e cantorais, da seu falta de imaginação, de atitudes educadas e correctas,
sobretudo a falta de gestos de apreço para com quem, como ele Zé Bogart,
era afinal tão fiel e assíduo cliente: a oferta de uma garrafinha de champanhe ali,
a borla de um café acolá, uma bebida grátis mais além,
enfim, uma atençãozinha, vez por outra, coisa por que babava e de cuja falta se ressentia.
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Mas o meu ex-patrão não tinha essas qualidades de um sábio sedutor-cativador de gente.
Não sabia agir com naturalidade e charme sobre as pessoas. Tirando o dinheiro delas
que, muito ou pouco, contaria com gula sôfrega no final da noite, elas para ele
eram uma espécie de condição para e não verdadeiramente o alvo do negócio.
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Por semanas, meses, aturei de este singular polícia à paisana, Zé Bogart,
o fel reiterado de todas as queixas milimétricas e pretextuais de tudo, cegas,
amparei-lhe o azedume recorrente de todos os ressentimentos,
coleccionei os seus insultos sibilinos contra o meu ex-patrão.
Era ele de um lado e aquela mulher do outro no mesmo espírito queixoso e enjoado.
Era ele de um lado e aquela mulher do outro no mesmo espírito queixoso e enjoado.
De tudo isso se apercebia também o meu ex-patrão, dada a sua audição de tísico,
e desabafava-me que, dadas as boas peças maledicentes e desdenhosas que eram,
e desabafava-me que, dadas as boas peças maledicentes e desdenhosas que eram,
lhes pagaria de bom grado por que deixassem de vir. Era dado a estes bluffs.
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Certa vez, o casal resolveu sair sem pagar. Para tal, risonhos e colados,
disfarçaram-me a fórmula de saída final com o ritual das infinitas saídas ao exterior para fumar,
não se despedindo de mim, não dizendo nada, limitando-se ambos a passar diante de mim
e a desaparecerem nas minhas costas com os cigarros em riste e os isqueiros,
como sempre, ele com o seu copo de Whisky-Cola, ela de braço dado com ele. Confiei.
como sempre, ele com o seu copo de Whisky-Cola, ela de braço dado com ele. Confiei.
No final da noite, demos pela falta de dois cartões e tornou-se-nos bem claro de quem eram.
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Na noite seguinte, chegam ambos com plácida naturalidade ao Pub.
Ora o meu ex-patrão, que por acaso estava ali à porta a afixar
umas burocracias fiscais quaisquer, mal os viu, diante da restante clientela,
desatou a vexá-los, com a sua vozinha zequinhas, nada viril, nada máscula,
desatou a vexá-los, com a sua vozinha zequinhas, nada viril, nada máscula,
mas de chofre, assim impiedoso, a tirar logo ali o acumulado
e sem que o Zé Bogart tivesse tido tempo sequer de miar:
«Vocês não entram. Não entram e não entram,
enquanto não pagarem a despesa de ontem.», e fechava-lhes a porta de vidro na cara.
Foi então que o Zé Bogart lhe disse, com alguma inteligência paciente, mas numa tristeza
que depois lhe ficou incrustada no rosto por muitos e bons dias:
«Mas como é que queres que eu pague, se não me deixas entrar?!»
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Isto desarmou inteiramente o meu ex-patrão que hesitou nessa altura.
«Bom, está bem... Peço desculpa, se assim é, então está bem...», e deixei-os entrar.
Um embaraço grosso ficou no ar, a coisa desanuviou-se muito tensa e estranha.
«O teu patrão é um filho da puta, um mal-educado, não vale um corno.»,
disseram-me eles, como tantos outros mo haviam dito e redito sem que eu de todo
nisso corroborasse ou acreditasse, confiado na bondade essencial daquele.
Mas de todo em todo, lá entraram e pagaram.
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Certo é que a partir dessa grande humilhação que ele soube engolir,
ela deixou de o acompanhar ao Pub e vir encontrá-lo lá.
Vinha ele agora na sua velha solidão agarrada àquele poiso, jangada de memórias,
Vinha ele agora na sua velha solidão agarrada àquele poiso, jangada de memórias,
e sempre triste, muito triste, com o ar mais apagado e triste
que se pode ostentar num rosto, no interior de uma casa onde afinal se bebe muito,
se dança e namora muito. Era vê-lo, mais calado que nunca, de semblante desanimado,
se dança e namora muito. Era vê-lo, mais calado que nunca, de semblante desanimado,
muito longe daquele espírito de mofa antigo com que,
encostado à sua esquina cativa de balcão, ria de tudo e de todos.
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Aquele homem pacífico, inseguro, dependente do Pub, era afinal uma criança perdida.
Detestava armas. Tinha uma teoria sobre o seu porte como convite tentador ao seu uso
e por isso havia muitos anos que não fazia qualquer uso da sua.
Aquela protuberância no seu quadril haveria de lhe bastar como ostensivo sinal dissuasor.
Zé Bogart era agora um homem profundamente magoado.
A sua arma, por baixo da T-shirt negra, só podia estar descarregada!
Nem poderia combinar aliás com os seus inúmeros pares de calças brancas
ou com os seus variados pares de sandálias.
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Pouco tempo depois, seria eu a beber o veneno do ardil conspirativo
Pouco tempo depois, seria eu a beber o veneno do ardil conspirativo
com que aquele Zequinhas-Patrão me traíu e sornamente dispensou.
Pouco tempo após, seria eu a dar razão a quantos nunca o suportaram enquanto mosca aparentemente insignificante e aparentemente morta,
mas afinal finória de tão viva e furtiva
entre o cobrar e o despedir.
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