O JANSENISTA DIZ ADIEU

Tenho pena: «1. Qualquer noite seria boa para passar a certidão de óbito: fica esta. Foi bom, foi agradável, mas decidiu acabar sem me perguntar nada, e algumas tentativas de reanimação nos últimos meses não resultaram. Foi uma época da minha vida, algumas chegadas e muitas partidas, algum riso, alguma discussão e muito silêncio. O gozo do anonimato foi-se perdendo e os combates foram esmorecendo; ficou o gozo epicurista da partilha, imagens, sons, uma ou outra evocação, uma ocasional farpa irreverente. 2. Nestes longos anos fui muito acarinhado por estranhos, e ficar-me-á o travo de uma cumplicidade descarnada que se tornou poderosa, contra toda a expectativa, e o espanto da exploração a fundo de uma possibilidade tecnológica inteiramente nova. Sinto-me mais arrependido das amizades que deixei de fazer do que das falsas familiaridades que o confronto de ideias fez esboroar; a amizade postiça valeu para mim ainda menos do que a correcção ideológica. 3. O caminho continua por outras paragens mais exíguas, mais secas, mas as únicas que a minha vida presente, pelos vistos, comporta. Por aqui, continuarei a ler quem já lia, e mais uns quantos que não deixam de chegar. Um dia pode ser que regresse, mas calçado, sem corda ao pescoço, sem o burel puído e sem a máscara severa de um jansenista.» Jansenista

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