ÊNTASE NA BRUMA
Por uma manhã brumosa na planície, a mulher, baixinha, êntase de carne que entronca numa cabeça pequenina, veio para cobrar uns dinheiros, na verdade indevidos dada a exploração, o aproveitamento e o abuso por parte dela, cobradora. Duzentos euros por quinze dias num quarto minúsculo sem cozinha! Com uma filha deficiente profunda desde o nascimento, há quarenta anos, cruz pesada, fateixa a qualquer outro tipo de vida, amarga no mais fundo, encontrou nas desumanidades da cobrança onzena, injusta e a doer, o escape que lhe faltava para entornar o fel. Por isso, batia sonora e ostensivamente à porta envidraçada do meu novo albergue, apanhando-me seminu, acabado de levantar, toalha de banho em torno do pescoço. A porta estremecia numa gravidade de vida ou de morte. Logo lha abri, evitando mais alarde desavergonhado. «Vinha pelo meu dinheiro.» Respondi que só podia pagar metade e que aquilo não era vida. Tinha filhos para criar. Era demasiado de uma vez para tão escasso ou tão nulo usufruto de um quartinho afinal bem raquítico. Disse que esperasse ali fora, mas logo reformulei instando-a a entrar. Entrou. Quase sessenta anos. Óculos de aro grosso, castanho-escuro, quadrangulares. Roupa de treino. Um rosto pronto a sorrir, mas como sorri o chinês, e uma alma encarniçada por dinheiro que sugava do suor de quem lhe caísse na teia sorridente. Operários. Mecânicos. Carniceiros. Errantes. Turistas. Professores desgarrados. Dei-lhe a tal metade entre algum agastamento de modos. Saíu. Afastou-se. E foi magoado e compassivo que tomei o meu banho matinal.
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