APAIXONADO PEL'OS MAIAS
Devo ter levado mais de três mil quilómetros a reler Os Maias. Contemplativa e saboreadamente. Deixar-me entranhar de ele, romance. Entre o Porto e o Alentejo Profundo e, de novo, entre o Alentejo Profundo e o Porto, fiz a releitura mais intensa possível de um texto já conhecido, mas até há pouco sem o benefício da experiência e da sensibilidade por mim acumuladas. Com paragens inúmeras em Lisboa, nessas viagens, o romance estava sempre entre as minhas palmas, de Expresso em Expresso, de comboio em comboio. E foi marcante recentemente, enquanto atravessava a grande Cidade, atravessar de igual modo, com os meus olhos, a mesma toponímia lisboeta presente nos eventos que a criatura-narrador de Eça desenrola nesse absolutamente luminoso romance. Os Olivais, onde Carlos e Maria se entrelaçaram, mas também Miss Sara, a lúbrica puritana perceptora de Rosa, com o robusto jardineiro, ocultos, entre ardores brutais, rebolando na relva pelas madrugadas incestuosas daquele Agosto. Sentir ali, nas décadas de setenta e oitenta do século XIX, resumido e repetido, o mesmo País civicamente raquítico, raquítico económica e politicamente, deu-me a pressentir também o mesmo cheiro a pólvora revolucionária que se antecipa para breve, se a indignação sair às ruas, em virtude de estrangulamentos sócio-económicos semelhantes aos do tempo da história narrada dos quais nos aproximamos tutelados por figuras patrióticamente baças e civicamente reles. Um País comprado, corrompido, anestesiado pelo Poder Político nos seus subsídios e favores e jeitos, chegará prestes aos seus limites de fantasia. O cheiro a verbena da Gouvarinho, primeiro inebriando e depois enjoando. O cupé e a tipóia de todos os impulsos. Piafés de cavalos à porta do Ramalhete. Brumas de um resfolegar animal cavalgando entre as ânsias de um enamorado, a caminho de Sintra só para vê-la. E sobretudo isto muito meu, temperado e alternado com as paisagens e a luz de fim de dia no meu país entrando-me pelos vidros de viagem: uma paixão visceral pelos personagens, pelas paisagens morais e físicas ofertadas pelo supremo narrador-sentidor de Portugal, uma paixão por Ega e por Afonso, pelo desenho de eles, uma participação física nos factos narrados e uma cumplicidade plena com as personagens, como coisa minha, assumida pela minha carne e pelos meus ossos, algures num Tempo Inefável onde, enquanto Povo, para sempre nos recapitulamos antes de capitular à falência por um novo renascimento. Talvez nunca me tenha apaixonado tanto pelo recheio de um livro e o sentido que re-assume no tempo presente português. O testamento da decadência portuguesa, compresente n'Os Maias, maravilhoso prenúncio genial de catástrofe iminente então, como agora mesmo, é um desafio a que conheçamos e amemos, para que mais bem o superemos, este nosso lastro multissecular de venalidades, corrupções e fraquezas mimetistas do exterior. O testamento d'Os Maias está por abrir e assumir.
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ABRAÇO DE LUSIBERO
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