MEU PAI, MEU EMAÚS
Ontem reparei nas tuas mãos, meu pai. Essas mãos que foram jovens, firmes, amplas, sempre afáveis, ostentam hoje o mesmo calor mas numa carne levemente emurchecida, beleza nova. Têm Deus na textura, no tom moreno de Judeu Português. Falavas, ao jantar, à mesa onde nos sentamos todos os dias, bebemos o vinho rubro, tomando a frugal refeição. Comecei a reparar nelas, súbita epifania, como os de Emaús no Desconhecido cujas palavras lhes incandesciam o âmago e logo desapareceu para existir ainda mais incomparavelmente para eles e para os demais. Essas mãos! Como as caminhadas intermináveis escola-casa e casa-escola que fazia muito jovem ainda, quando por qualquer razão todo eu era uma prece pungente e no entanto discreta pela saúde e protecção de ti, pai, e da mãe, fiz, só nesta semana, cinquenta quilómetros a pé, dobadoira humana, tecendo perseverança, indo ao garante do meu pão mínimo, sob o sol nascente, e voltando dele, sob o sol poente, entre o ardor do meu suor e a mansa brisa, fadiga de peregrino demandando a própria paz. Austero, farei o mesmo a cada dia, todo o santo ano, meu Emaús, meu pai. Por ti, por elas. E tanto mais obstinado, sob o sol, o frio, a chuva, quanto mais me disserem: «Tu não vais conseguir.»
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continuamos a repartir o pão de cada dia
enquanto o bce emprestar o 'cum quibus'