AMBAR - IDEIAS NO PAPEL, A PRIMEIRA TENTATIVA
O facto de ter ficado sem o biscate, sem o meu trabalho no Pub,
assim tão sem aviso, tão sem qualquer rede ou qualquer contemplação,
é uma coisa cruel, injusta e releva de uma cilada bem armada contra mim.
Implica, desde logo, que neste momento e por muitos e bons momentos
eu não tenha uma singela nota de cinco euros no bolso.
Não a tenho hoje. Não a terei amanhã. Não a terei depois e depois de amanhã.
Totalmente sem rede! Vá lá que vivo em casa do meu saudável e bom pai.
Somos agora quatro pessoas desempregadas de longa duração nesta casa:
a minha mulher, as minhas duas irmãs e absolutamente eu, agora.
É o meu pai, com o seu trabalho, que nos aprovisiona a todos com o básico,
incluindo as telhas contra o frio e a chuva, incluindo o pão e o vinho na mesa.
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Penso em tudo o que me aconteceu naquela Noite com uma certa amargura.
Rememoro a saída de vários dos parcos clientes de essa noite
e reconheço que a semi-Patroa pleni-Orelhuda aproveitara para me denegrir
e sugerir à clientela o que me faria, despedir-me, e porquê. Como o sei?
Na altura, não notei, estava feliz e eufórico, inconsciente de tudo o que se seguiria,
entretido numa conversa prolongada e interessante com dois clientes habituais.
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Mas a verdade é que quer o Sr. Branquinho Brandino,
quer o Zézinho da Unicer, quer ainda o Andrade,
o mais acérrimo detestador do meu ex-patrão Cara-de-Cocas,
todos eles, à saída, tiveram breves atitudes e breves palavras para comigo
que agora posso reler a outra luz. Entre o pasmo e o deslumbramento, eles já sabiam.
Com o velho solitário milionário Branquinho, tinha vindo a ter excelentes conversas amistosas,
muito ricas e muito cúmplices, afáveis também. Ganhei carinho por ele. Percebia o dele por mim.
E mesmo sabendo-o sistematicamente incapaz de uma gorjeta,
que nunca me deu nem sei se dava lá dentro aos demais empregados,
nem esse fechamento fechado, hermetismo da sua mão,
me fazia perder de vista outras dádivas de vida suas, narrativas suas ricas, intensas,
como quando ajudou a sua velha mãe a não mais sofrer,
enquanto agoniava de dores, sem necessidade e só por escrúpulos rigoristas,
por causa de um cancro terminal,
dando-lhe por amor do conforto e da dignidade dela, através de um médico amigo,
o poder até aí inexistente de finalmente repousar, de dormir deliciada,
abreviando embora a morte.
Saboreara dele inúmeras narrativas de vida, bem contadas, de um combativo empresário,
pude saber que agora vivia só,
pude saber qual a sua rotina habitual, como fora a sua viagem recente a Marrocos
e a estada de mais de uma semana no Algarve, de ambas as quais chegara eufórico,
cheio de coisas para contar, pressuroso em cumprimentar-me, o velho Branquinho,
sabia também dos duzentos mil euros dados e que a filha lhe torrara para nunca mais,
do divórcio, da vida pacata e praticamente associal que leva, a não ser ali no Pub,
onde tem as suas amigas de dança e galanteio e porventura alguns amigos.
do divórcio, da vida pacata e praticamente associal que leva, a não ser ali no Pub,
onde tem as suas amigas de dança e galanteio e porventura alguns amigos.
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Por ironia, havíamos conversado igualmente naquela noite sobre hierarquia e relação empregador/trabalhador, como criar e conservar a disciplina e o bom ambiente,
a lacónica regra de agir e falar pouco na hora de punir ou despedir,
casos na sua antiga empresa. Porém, mais tarde, noite dentro,
notei que, enquanto eu conversava prolongadamente com dois amigos-clientes,
ele viera a remirar-me, viera, sem palavras, a olhar-me de alto a baixo,
insistindo mais, concentrando-se mesmo, na ponta gasta e já um pouco feia das minhas botas.
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Ao despedir-se, foi misterioso, foi mais comedido que das outras vezes,
foi mesmo enigmático com o seu olhar de velho gangster convertido à boa vida.
Baixinho, reguingote-reguila em declínio, níveo nos seus cabelos
envolvendo a reluzente calva, olhos verdes faiscantes e pequeninos,
aquela ocasional gaguez vestigial que lhe ficava a matar,
o velho Branquinho já sabia.
O Andrade então, esse, que odeia amorosamente o meu ex-patrãozolas,
mas nunca falha uma noite de consumo mínimo, foi mais luminoso:
«Ora então felicidades!» Disse-me ao sair. Eu respondi inconscientemente:
«Felicidades, igualmente, ó Fernandes. Já vais?»
Ia, de facto. Magro, rosto encurrilhado como um pano de loiça, baixo,
viajaria, como sempre, para o Seixal, e dir-me-ia isso mesmo, como de costume,
Seixal que é de onde parte em pesquisa a trabalhar na prospecção e compra de sucata
para o seu patrão um tal Coutinho que, segundo ele, era suposto eu conhecer bem.
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Foi curioso ter eu nessa noite partilhado com o meu ex-patrão, e para coisa nenhuma, isto:
«Tu devias passar mais tempo conversando com as pessoas, pá.
Fazer como eu, que invisto muito nisso, a bem do Pub, cativando ainda mais a gente.
Não posso ser apenas o pára-choques da suas queixas, invejas, e insatisfações contra ti.
Sabes?, estou a adorar o trabalho aqui, o bom clima com os colegas, contigo.
Trabalhar aqui para mim, nesta fase, é puro prazer. É por prazer.
Gosto das pessoas. Estou bem adaptado e familiarizado com tudo e todos.
A vivacidade social é notável e enriquece-me imenso, ensina-me muito,
tenho feito muitos amigos e nem mesmo o facto de se tratar fundamentalmente
de um gerontoPub, polvilhado a juventude, retira fulgor ao meu sincero prazer.»
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Ambos cá fora, ele permanecia a ouvir-me, com os seus suspiros sonorizados gays,
esse tique incompreensível vocal-orgasmático,
com o seu ar de desenho animado dos Simpsons,
especificamente o condutor cabeludo do autocarro escolar das crianças. E sorria,
e completava-me as frases, perna cruzada,
aconchegado nos seus óculos covardes e traiçoeiros,
omnisciente do meu futuro ali. Mas esta fora mais uma ingénua declaração vã
de amor meu e minha indefectibilidade ao seu Pub.
Que crueldade o que se seguiria!
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Havia já tão poucos clientes que, como habitualmente,
me internei no ventre do Pub por uns minutos para tomar um café curto, meu hábito,
e que eu mesmo tirava na cozinha, com vista para a saída e o meu posto.
Mas a patroa intermitente tinha-me tomado de ponta e foi logo azedando com acinte,
quando terminei: «Tome atenção, já foram saindo umas pessoas pela porta.»
Disse-o com crassa aspereza e com ferocidade funda.
Abominei o reparo escusado. Eu tinha um amigo-cliente à porta que
com naturalidade me supriu lá, onde quem deveria não o faz.
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Quantas e quantas noites, aflito para mijar, fiel ao meu posto, esquecido ali,
nunca tive ninguém que por minutos me rendesse! Nem mesmo o parvo sonso
e preguiçoso sobrinho do ex-patrão, esse simiesco desenho animado parasitário,
corpo de garnizé arvorado em corajoso, com os seus dentes ralos,
o seu queixo altivo e mandador ali de coisa nenhuma,
sempre ridicularizado e antipatizado por quase toda a clientela
na apertada superintendência apertada de namorado da filha da intermitente patroa,
agora no Brasil em usufruto de férias e férias também dele.
E queixei-me, mal pude, ao ex-patrão. Disse-lhe: «Olha, a Má-Britney
acaba de me fazer um reparo tenso inaceitável porque injusto para mim.
O controlo dos cartões, como sabes e ao contrário do que sucedia quando cheguei,
é total e absoluto. Bem poderias dizer-lhe que não considero nem úteis
nem pertinentes quaisquer reparos vindos dela, e não de ti,
e seria bom não se repetirem.»
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Lingrinhasmente, muito a fugir de mim, como falso zequinhas que é,
e vai fodendo e vai traindo toda a gente que foi dele amiga, seco por isso de amigos,
e vai conspirando contra quem lhe apraz conspirar e resolve desprezar,
só me disse com a sua voz zequinhas, enquanto me ia sorrindo muito amarelamente:
«Não digo nada. Ela é que manda em mim.»
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Mas foi justamente a murmurar à furibunda da hemi-patroa
a minha queixa revertida em arma provocatória e incendiária,
que, entrando para concluir o meu serviço,
o surpreendi aquela Noite tão precoce a terminar e tão rala em clientela.
Acto contínuo, desaba, Vespa Humana, essa bicha sobre mim
e despudoradamente diante de toda a gente: «Estou com você por aqui.»
E desenhava em lâmina o dedo indicador a rasgar de ódio a própria garganta.
Começava o barraco. A peixeirada desencadear-se-ia e a humilhação.
O meu estupor e reacção inútil. Mais tarde dois silêncios. O meu, derrotado.
O dela, ciciando com risinhos a análise da facturação, com a imigrante cubana.
Estúpida mulher bronca, como se não soubesse que esse Saco de Lamúrias
transformara o ouvido de toda a gente em penico das quezílias e zangas com ela.
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Agora, sinto-me amargo, desfalcado de um instrumento de sobrevivência.
Estou em sofrimento. Embora foi o trabalho, foi o alívio de vida, foi a comunidade de trabalho,
foram todos aqueles e aquelas imigrantes com quem gostava de falar
e de quem me sentia protector e amigo. Foram os clientes que me consideravam.
Nunca tive nem tenho tempo ou necessidade de me roçar seja em quem for,
muito menos no corpo repugnante, assimétrico daquela quarentona
que ilusoriamente se considera desejada por tudo o que é homem ali,
ela que só é toda do Flácido Hippie do meu ex-patrão quando calha e lhe convém,
quando o que é para mim é uma soma de cosméticas equívocas que nada me dizem
e a transformaram só em disformidade: um palito corpóreo espetado em tetas e em nádegas
com orelhas de Gnomo.
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Estão bem um para o outro porque se utilizam
e se prostituem de interesse e mesquinhez um ao outro. Puta que os pariu, falsos ambos!
Atirar-me com essa estupidez maliciosa do meu roçar nela
é o último grito de ficção científica numa cabeça desequilibrada e doida.
Dificilmente perdoarei também essa aleivosia, cereja no cima desta merda que me fizeram.
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Rejeitado, passei um dia dorido como de todas as vezes na minha vida em que fui rejeitado.
Impotência. Derrota. Desgosto. Sensação de injustiça. Desorientação. Fragilidade.
Pensei-me num halo de desânimo, até porque esse Símio-Simpson do meu ex-Patrão,
o falso parvo, o falso coitadinho, o grande fodilhão psicológico traiçoeiro e silencioso,
o desprezivo confidente daqueles a quem confidencia pseudossofredoramente,
deve-me um mês inteirinho, Junho, e mais um dia,
e é como se mesmo isso, pelo meu fundo desgosto, eu desse por perdido.
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Agora quero lutar redobradamente pela minha Matéria da Noite,
conseguir talvez chamar as atenções de uma generalidade de Media para ela.
Jornais. Revistas. Esbocei ontem mesmo uma reacção
e enviei, por isso, desesperado e decidido,
o meu primeiro e-mail a vários tipos de contactos da Editora Ambar,
a qual, fiquei a saber por um e-mail de uma amiga de Mestrado,
vai publicar este mês um livro, «A Prostituição e a Lisboa Boémia»,
de José Machado Pais. Enviei um e-mail agressivo e uma proposta rasgada
de José Machado Pais. Enviei um e-mail agressivo e uma proposta rasgada
para que me publicassem a mim também.
Conto reproduzi-lo, ao e-mail, aqui, um de estes dias,
mas são estes os endereços electrónicos, para quem quiser fazer algo de semelhante:
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(Serviço ao Cliente (site)servico.site@ambar.pt
Geralgeral@ambar.pt
Serviço ao Clienteservico.cliente@ambar.pt
Direcção de Marketing
pedro.brandao@ambar.pt
Direcção Nacional de Vendasvalentim.couto@ambar.pt
Departamento Internacional de Vendassandra.ferreira@ambar.pt
Direcção de Vendas em Espanhajgomez@ambarespana.com)
(Serviço ao Cliente (site)servico.site@ambar.pt
Geralgeral@ambar.pt
Serviço ao Clienteservico.cliente@ambar.pt
Direcção de Marketing
pedro.brandao@ambar.pt
Direcção Nacional de Vendasvalentim.couto@ambar.pt
Departamento Internacional de Vendassandra.ferreira@ambar.pt
Direcção de Vendas em Espanhajgomez@ambarespana.com)
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Evidentemente, que tenho agora vontade de desanonimizar o nome do Pub,
quando publicar o meu livro noctivagado, sofrido e esmagado,
conservando, evidentemente, anónimos e indistintos todos os seus personagens.
Quem é patrão-cara-de-simpson cabeludo e orelhuda patroa é o que é.
Os outros, publicado o livro, talvez só se reconhecessem em traços sem nome,
mas seria preciso que tivessem jeito e arte para ler, o que é duvidosíssimo.
Dêem-me um ambiente, uma função, uma profissão, e glorificá-las-ei de literatura.
Se eu fosse varredor de rua ou lixeiro, glorificaria de literatura isso mesmo.
lkj
Chamem-lhe um infinito desejo de vingança pela língua, pela cultura e pela literatura.
Comments
Que boooom!
Fizeste bem! Digo-te como leitora dos teus contos do pub e como pessoa que adora ler, alias acho que o meu talento é mesmo esse, é ler e não escrever, e que modestia à parte já leu muita coisa e coisa boa (pelo menos para a idade que tenho) tens muito talento, tens uma escrita fantastica e tens futuro, eu compro assim que sair :)
Vai a luta!
Um beijo enorme
Táva difícil, estava, estava...
Tens que equilibrar a tua auto-estima e deixar de ver nos outros alguém em quem possas confiar, só porque te tomam como confidente e te usam como um confessionário. Quem lava a sua alma na noite, tem algo de inconfessável... mesmo par osouvidos da noite.
Foste porteiro, apenas isso.