BRASIL, INVENÇÃO DO SÉMEN PORTUGUÊS
Só um português universalista, nunca um francês e menos ainda um inglês,
poderia inventar e sustentar alguma vez a declaração de alma
de que a sua pátria era a Língua,
forma de pensar, lugar musical que vestigia o Latim e o Grego,
registo ortográfico que igualmente invoca e re-evoca o Latim e o Grego.
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Pela Língua circula, veiculado mais que o sangue,
um espírito, um modo de ser, uma idiossincrasia únicos,
no caso português, uma brandura, uma capacidade e vontade de amar mais determinantes,
em última análise, que a de dominar, tirar partido, explorar.
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Historicamente, o balanço é esse:
Uma enorme hemorragia de gente saída do Portugal europeu,
culturalmente restritivo e economica e empreendedoramente constritivo,
para melhor se cumprir no Portugal da Língua universalizada,
agregadora, miscigenada, com mais possíveis e maiores horizontes a tentar.
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A Língua Portuguesa, desde que se lançou ao conhecimento e à troca
pela grande costa africana, os primeiros europeus até aos confins da Ásia Esquecida,
os primeiros europeus pela Oceania e talvez os primeiros europeus modernos
pela América, tem sido Sémen de Afectos mais intensos e transcendentes
que outra coisa qualquer que valha a pena relevar.
Que diferença entre os portugueses que se apaixonaram por japonesas, e ficaram
e os que se apaixonaram pelas aborígenes de Timor, e ficaram,
e os que se apaixonaram pelas nativas do litoral de Vera Cruz, e ficaram,
e os que se apaixonaram pelas negras da Guiné, Cabinda, Angola e Moçambique,
e ficaram? Mil Helenas raptadas não gerariam tanta paz e tanta hsitória de vida.
A Língua era também o filho que era feito e universalizado.
A Língua estava também no coito, da vulva ao falo, do beijo ao parto.
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Afinal, o Nectar dos deuses era a Língua Portuguesa.
Afinal, a Ambrósia diva era a Língua Portuguesa.
Por isso mesmo, desfeitos os equívocos e os rumores envenenados
que procuram reescrever mais de quinhentos anos de inseminação cultural,
que também é permuta, permeabilidade, síntese, pela Língua e pela Cultura,
é tempo de retomar a nossa vocação irrefragável, reacender a nossa paixão,
quer na Criatura Admirável Brasil quer na África Amada Nossa, que fala português,
quer ainda na Ásia que bem nos deseja e conhece.
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Um farmacêutico a quem recorri no Brasil, ao ver que eu era português,
logo me elencou, ressentido, razões erróneas anti-Portugal.
Imediatamente me deu conta das teses envenenadas, estereótipos gastos,
sobre o papel e o peso dos portugueses no presente brasileiro,
e que, segundo ele, explicam todos os défices desenvolvimentais do país.
Está, em muitos casos, enraizado este pensamento enviesado,
embora pessoalmente o prefira a ele,
que ao esquecimento e apagamento psíquico de Portugal no Brasil,
remetido às anedotas, às padarias e às curiosidades mais elementares e distantes.
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Daí que valha sempre a pena recordar o que escreveu o novo Prémio Camões,
João Ubaldo Ribeiro, sobre a tralha preconceituosa
que vai circulando por (e varando!) alguma da sociedade brasileira,
texto em que graças a Deus tropecei aqui:
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«Levando-se em conta nossa pitoresca realidade contemporânea, até que a quantidade de besteiras ditas e escritas sobre o controvertido aniversário do Brasil não dá para surpreender. O que chateia um pouquinho é que diversas dessas besteiras continuarão a perseguir-nos pela vida afora, algumas talvez trazendo conseqüências indesejadas. A principal delas, naturalmente, é a de que o Brasil começou em 1500, quando nem mesmo no nome isso aconteceu, posto que éramos uma ilha quando os portugueses primeiro viram as terras daqui e, durante muito tempo, o Brasil que duvidosamente existia não tinha nada a ver com o Brasil de hoje.
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A impressão que se tem é que, do povo às autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que o Brasil já estava no mapa, com as fronteiras e características atuais, no momento em que Cabral chegou. Teria tido até um nome nativo, já proposto, pelos mais exaltados, para substituir “Brasil”: Pindorama, designação supostamente dada pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não sou tão burro assim para acreditar que os índios tinham qualquer noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um “país” chamado Pindorama. Não havia qualquer país, é claro, nem sequer a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No máximo, significaria o único mundo conhecido deles. Parece assim que os nossos índios administravam impérios e cidades como os dos maias, astecas ou incas, quando na verdade, que perdura até hoje, viviam neoliticamente e a maioria esgotava os numerais em três - era o máximo que conseguiam contar e o resto se designava como “muito”.
A impressão que se tem é que, do povo às autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que o Brasil já estava no mapa, com as fronteiras e características atuais, no momento em que Cabral chegou. Teria tido até um nome nativo, já proposto, pelos mais exaltados, para substituir “Brasil”: Pindorama, designação supostamente dada pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não sou tão burro assim para acreditar que os índios tinham qualquer noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um “país” chamado Pindorama. Não havia qualquer país, é claro, nem sequer a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No máximo, significaria o único mundo conhecido deles. Parece assim que os nossos índios administravam impérios e cidades como os dos maias, astecas ou incas, quando na verdade, que perdura até hoje, viviam neoliticamente e a maioria esgotava os numerais em três - era o máximo que conseguiam contar e o resto se designava como “muito”.
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Como corolário disso, vem a tese de que fomos invadidos. Com perdão da formulação pouco ortodoxa da pergunta, quem fomos invadidos? Todos nós, salvante os mais ou menos 400 mil índios que sobraram por aí, somos descendentes dos invasores, inclusive os negros, que não vieram por livre e espontânea vontade, mas também não viviam aqui na época de Cabral e hoje constituem parte indissolúvel de nossa, digamos assim, identidade. Imagino que haja quem pense que, diante de uma delegação portuguesa, algum diplomata ou general índio tenha argumentado que se tratava da ocupação ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chuí e que aquilo não estava certo, cabendo talvez a intervenção das Nações Unidas.
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Como corolário disso, vem a tese de que fomos invadidos. Com perdão da formulação pouco ortodoxa da pergunta, quem fomos invadidos? Todos nós, salvante os mais ou menos 400 mil índios que sobraram por aí, somos descendentes dos invasores, inclusive os negros, que não vieram por livre e espontânea vontade, mas também não viviam aqui na época de Cabral e hoje constituem parte indissolúvel de nossa, digamos assim, identidade. Imagino que haja quem pense que, diante de uma delegação portuguesa, algum diplomata ou general índio tenha argumentado que se tratava da ocupação ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chuí e que aquilo não estava certo, cabendo talvez a intervenção das Nações Unidas.
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Se a História tivesse tomado rumos um pouquinho diferentes, nossa área hoje podia estar subdividida em vários países diferentes, uns falando português, outros espanhol, outros holandês, outros francês. Do Tratado de Tordesilhas às capitanias hereditárias, aos movimentos separatistas e à ação do barão do Rio Branco, muita coisa se passou para que nos tenhamos tornado o Brasil que somos hoje. Ninguém chegou aqui e descobriu o Brasil já pronto e acabado (se é que podemos falar assim mesmo agora), isto é uma perfeita maluquice. O Brasil, é mais do que óbvio, se construiu lentamente e às vezes aos trancos e barrancos.
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Compreende-se que nativos de países como o Peru, o México e outros, notadamente na América Central, se sintam invadidos. Até hoje são numerosos e discriminados, muitos nem falam espanhol e, quando aportaram os conquistadores, tinham cidades maiores do que as européias. Mas nós? Quem, com a notável exceção do amigo pataxó e da jovem senhora xavante que ora me lêem, foi aqui invadido? Vamos supor, já jogando no terreno da absoluta impossibilidade, que o chamado mundo civilizado ignorasse a existência destas terras até hoje. Teríamos aqui, não o Brasil, mas uns 4 milhões de nativos de beiço furado e pintados de urucu e jenipapo (nada contra, até porque furamos as orelhas, nos tatuamos e usamos batom, é uma questão de estilo), que não falavam as línguas uns dos outros, matavam-se entre si com alguma regularidade e cuja tecnologia não era propriamente da era informática. Brasil mesmo, nenhum.
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Mas está ficando politicamente correto, suspeito eu que por motivos incorretíssimos, abraçar a tese da invasão do Brasil. “Nós fomos invadidos, fomos invadidos!”, grita em português brasileiro, a única língua que sabe, um manifestante mulato, em Porto Seguro. Será possível que não se perceba a vastidão dessa sandice? Daqui a pouco - e aí é que mora o perigo - entra na moda de vez e os resquícios das nações indígenas que ainda subsistem deverão aspirar à soberania sobre os territórios que ocupam. Como na Europa Oriental, cada etnia quererá ter seu Estado e sua autonomia, com bandeira, hino, moeda (dólar, para facilitar) e passaporte. Que beleza, forma-se-á por exemplo, depois de um plebiscito entre os índios, o Estado Ianomâmi, completamente independente e ocupando área bem maior do que muitos outros países do mundo juntos, reconhecido pelas organizações internacionais e protegido pelo grande paladino da liberdade dos povos, os Estados Unidos, que mandariam missionários e ajuda econômica e tecnológica e, dessa forma, investiriam desinteressadamente numa área tão pobre em recursos econômicos e que tão pouca cobiça desperta, como a Amazônia. E, se protestássemos, a Otan bombardearia o Viaduto do Chá, a ponte Rio-Niterói e o Elevador Lacerda, como advertência.
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Cometeram-se e cometem-se crimes inomináveis contra os índios, que devem ter seus direitos assegurados. Também se cometeram e cometem crimes contra grande parte dos brasileiros não-índios, outra vergonha que precisa ser abolida. Mas isso não tem nada a ver com a tal invasão, assim como a outra série de besteiras intensamente veiculada, segundo a qual, se não houvéssemos sido colonizados pelos portugueses, estaríamos em melhor situação, assim como estão em melhor situação a antiga Guiana Inglesa, o Suriname, a Indonésia, a Nigéria, a Somália, o Sudão e um rosário interminável de ex-colônias européias, quando na verdade se trata de um caso claro de o buraco achar-se bem mais embaixo. Como é que se diz “babaquice” em tupi-guarani?»
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O Besteirol dos 500 anos,
João Ubaldo Ribeiro, in O Estado de S. Paulo, 24/04/2000
Comments
um abraço
Notável o texto de JUR. Utilizei-o no meu blog. Espero que não se importe.
Abraço!