A CERVEJARIA - PARÓDIA IMPLÍCITA
Se os tempos não andassem tão fuscos e deprimentes
para uma esmagadora maioria de portugueses endividados e entalados por muitos anos,
comprimidos abusivamente pelo Fisco e pela sanha coimística e multística no terreno,
se os princípios da Justiça e da Repartição Justa da Riqueza se praticassem em Portugal,
talvez se suportassem e tolerassem melhor certas Notas Gourmet e Boa Vida
sobre sítios e serviços de luxo portugueses,
as brasseries nacionais da nacional hotelaria
e a sua necessária equiparação em requinte, qualidade,
bom gosto e tudo o mais, aos respectivos sítios internacionais de referência.
lkj
Por isso, qualquer coisa escrita neste domínio, hoje,
no esdrúxulo momento económico português,
é de uma legitimidade contundente,
é quando o lícito se torna ferino, e é quando o ambiente, a decoração,
o menu e os 120 euros por duas bocas se transformam
numa terrível e silenciosa ofensa aos nossos abissais limites e abissais carências.
lkj
Todos gostamos de civilização e do seu melhor, mas o seu lado negro é a exclusão.
Todos amamos os locais onde o prazer exista, mas o seu reverso é pago em escravidão.
Porque quem se alheie, indiferente, de isto perverso, pesado, em decurso,
quem se ausente de estas tantas e tão graves dificuldades crassas para quase todos,
de certa forma ofende-nos reduplicadamente:
lkj
«Se há um espírito brasserie, e eu acredito que sim, a Brasserie Flo que abriu no rés-do-chão do Hotel Tivoli tem muito que afinar. Vamos por partes. Em Paris, o império Flo são dezasseis brasseries espalhadas pela cidade. Conheço metade, sendo as minhas preferidas, por esta ordem, Le Boeuf sur le Toit, Bofinger, La Coupole (ao alto) e Julien. A Flo, propriamente, vem depois. Ninguém vai a estas casas à procura de grande cozinha. Vai-se lá por causa do tal espírito, porque o serviço é descontraído, porque (em Paris) a decoração é marcante — sobretudo na Coupole, que foi decorada por dezenas de artistas dos anos 1920, entre eles Chagall e Brancusi; ou no Bofinger, com a sua cúpula de vidro e os murais de Hansi —, porque fecham tarde, etc. Agora, o Hotel Tivoli importou o conceito. Fechou o restaurante Beatriz Costa (não confundir com o restaurante Terraço, no topo do edifício, neste momento fechado e em obras), mudou tudo, redecorou o imenso espaço, e abriu a Brasserie Flo, com entrada directa para a Avenida da Liberdade, o que não acontecia dantes. O espaço continua magnífico, com as soberbas janelas de pé alto. A decoração é no geral feliz (esqueça os posters) e a localização imbatível. Infelizmente, a carta é pobre: as inevitáveis ostras (frescas), sauerkraut (medíocre), um bife para esquecer, um pavé de vitela que o próprio staff desaconselhou, pouco mais. Sim, há marisco. Os vinhos portugueses estão muito mal representados, mesmo tratando-se de uma brasserie, ou seja, de uma cervejaria. Foi-me dito que era o conceito Flo. Mas, então se é assim, esqueceram-se de importar o caril de borrego, um ex libris da cadeia. Uma refeição com entrada a dividir por dois, prato, sobremesa, vinho (pode ser francês) e café, fica por 120 euros para duas bocas. O grande senão, a juntar ao da cozinha, que tem de levar uma volta, é mesmo a falta de espírito da casa. Em todo o caso, uma morada civilizada.»
lkj
Eduardo Pitta, in Da Literatura
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Um abraço da civilização