OSEIAS, O DISSIDENTE
James Tissot 1836 – 1902
O Profeta Oseias
aguarela — ca. 1888
O Profeta Oseias
aguarela — ca. 1888
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No escritório do outro lado de um corredor anexo ao Pub e a ele relativo,
transformado em arrecadação sempre caótica e imunda,
veio aninhar-se, necessitado, há uns dois meses, um jovem angolano.
O Oseias. Tal alojamento precário foi graças a instâncias de um imigrante brasileiro,
Washington, então meu colega de serviço ali e pastor da IURD ou coisa equivalente,
e que por ter trabalhado com o Oseias nas Obras, solicitou para ele ao meu ex-patrão a caridade
de um alojamento discreto, apesar de claramente ilegal e clandestiníssimo,
dada a triste indigência premente da sua situação de despejo consumado.
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O simpsoniano homem acedeu por cem euros mês.
Mesmo que não se visse apertado com tantas despesas, remunerações, aluguer,
só o Pub implicava de trespasse ainda uns mil e tal euros mês,
cobrados aos bochechos por um gorila, fiel guarda-costas do seu ex-sócio,
e faltavam-lhe pagar, dos duzentos e tal mil euros, umas dezenas de milhar,
a lógica seria sempre essa, a de exigir um módico montante por dormida,
banho e TV.
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Ora a coisa corre discreta e silenciosa, como deve ser.
Eu tinha acesso ao escritório-arrecadação
Eu tinha acesso ao escritório-arrecadação
quer para guardar os insonorizadores exteriores
trata-se de um Centro Comercial desactivado durante a noite,
trata-se de um Centro Comercial desactivado durante a noite,
quer para a gestão comezinha de cartões de consumo e afins.
Por não ter sido avisado da presença do Oseias,
foi com imensa estranheza que, no fim de uma madrugada qualquer, em pleno breu,
ao tentar repôr no escritório os insonorizadores, constatei uma estranha luz indevida
no interior através das portas de vidro. Fiquei alarmado.
E recuei, considerando aquilo certamente um assalto e o perigo notório.
Por não ter sido avisado da presença do Oseias,
foi com imensa estranheza que, no fim de uma madrugada qualquer, em pleno breu,
ao tentar repôr no escritório os insonorizadores, constatei uma estranha luz indevida
no interior através das portas de vidro. Fiquei alarmado.
E recuei, considerando aquilo certamente um assalto e o perigo notório.
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Por isso, pronto para a violência de uma entrada minha de rompante,
não quis agir sem que o ex-Patrão e o pastor testemunhassem aquela presença indevida
e voltei ao Pub para dar conta de isso mesmo e convocá-los.
Só aí ambos se deram conta do meu desconhecimento e me explicaram tudo.
Senti-me aparvalhado de surpresa e achei alguma piada amarela àquilo.
Era para guardar segredo. Claro!
Seja.
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Acontece que o Oseias, que foi um entre muitos outros futebolistas dissidentes
da selecção angolana nos anos noventa, faz uma vida apertada e cigana
porque procura enviar para Angola o máximo de proventos a fim de ajudar a família.
Só dias depois, calhou de nos encararmos e conversarmos, no início da noite,
brevemente sobre isso mesmo e sobre o resto:
desde logo sobre a política, pertencera à UNITA, e o momento presente angolano,
sempre lento e esperançoso, um dos países mais ricos do mundo
com uma das populações mais miseráveis do mundo, os meganegócios em decurso,
a evolução do Regime, a situação crítica de Luanda
a que o Povo já só apoda de Não-Anda,
a sua opinião de que só com Portugueses será possível toda a situação progredir por lá,
e não com brasileiros, chineses ou outros,
porque para ele somente os portugueses conhecem tudo, gentes, clima e potencial,
com a cumplicidade de quinhentos anos no território.
Gostamos da conversa. Empatizamos imediatamente.
E foi comovidos da empatia estabelecida
que nos demos um abraço cúmplice e irmão em despedida.
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A partir daí foi raro voltar a ver o Oseias. Só na noite da derrota face à Alemanha ele surgiu embriagado e infeliz a interagir com os primeiros clientes
antes de, fantasmagoricamente, passar para e desaparecer no seu covil.
Mas tornou-se frequente falar dele.
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Ao longo da Noite, o meu ex-patrão, sempre volante e disponível
para actividades marginais e de apoio ao funcionamento do Pub,
antes ou depois de tocar e cantar miando muito ao seu órgão
velhos sucessos de outras décadas sob a monotonia da sua caixa de ritmos,
(saía para buscar trocos, para comprar pão, simplesmente saía)
deixou de querer ir ao escritório, mesmo sob extrema necessidade.
Passou a delegar em alguém a tarefa.
Atirava para mim o ter de ir lá, mesmo estando eu preso às responsabilidades
de recepção da clientela e controlo de saídas. Por vezes,
faziamos uma espécie de braço de ferro bem-humorado sobre quem iria ou não lá.
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E isto porque no escritório naturalmente se acumulavam odores compactados
que tornavam afinal e verdadeiramente penosa a tarefa de lá penetrar:
as meias dependuradas a secar,
as meias usadas por lavar e dependurar a secar,
os vestígios alados a molhos e a recheio de BigMacs,
a leve sensação de gás de botija e outras odoríferas surpresas volitando ali,
não havia dúvida, transformavam o escritório, no mínimo, numa fábrica de adubos
e dir-se-ia que Estarreja se concentrava toda naquele refúgio onde Oseias morava.
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A última vez que voltei a ver Oseias foi precisamente no meu último dia de trabalho.
A grande Noite onde a peixeirada, o barraco, as questões pessoais,
me varreram conveniente e definitivamente de um trabalho onde o prazer e o hábito
me traziam domesticado, conformado, contente com aquele alfobre de narrativas e de vidas,
cada vez menos agónico e rebelado, a não ser na escrita posterior ao visto, vivido e observado,
cada vez menos agónico e indignado devido ao inexorável fosso social ali tão vincado,
devido à indiferença social e à lógica exploratória dos imigrantes
e de portugueses que se sujeitem a não pequenas humilhações.
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Nu, saído do banho, moreno, traços negróides só muito levemente amortecidos, atlético,
o homem acomodava num imenso gorro de lã a sua vasta grenha rasta,
cingia a cintura numa toalha e caminhava na minha direcção a fim de me cumprimentar,
com naturalidade e sorrindo muito ao mesmo tempo que partia, discursivo,
para o que o preocupava no momento: a pressão do meu ex-patrão
por que pagasse o aluguer, os seus cem euros. Era o dia três.
Só poderia pagar ao dia dezoito porque só por essa altura o empreiteiro,
homem que tiveram muitos problemas com a Segurança Social e com o Fisco,
lhe disponibilizaria o salário, coisa que o pastor poderia confirmar
ao meu simiesco ex-patrão.
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Pois foi com uma infinita confiança, agora tão incómoda recordar, que lhe transmiti
que colocaria uma palavrinha de intercessão por ele ao meu ex-patrão.
Disse-lhe que, mal podendo, e no momento mais adequado, procuraria
suavizar essa pressão e fazer com que esse Hippie Tardio, dono do Pub,
compreendesse a mecânica retributiva que tanto condicionava o Oseias.
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Mal sabia eu que o meu destino estava traçado e que nada me poderia salvar o trabalho.
Que nada me poderia salvar de conservá-lo.
Na verdade, o ciúme de mim por parte daquele simiesco simpson patronal,
da minha afabilidade correspondida e loquaz com a generalidade da clientela,
e o seu medo das respectivas e putativas consequências presentes ulteriores para ele,
que é profunda e até inexplicavelmente destestado por imensos clientes,
o modo como eu lhe resistia a arbitrariedades laborais grátis
e a abusos grátis de mim e do meu tempo, como tanto desejava,
haviam-no tornado a pouco e pouco mais retraído e mais sombrio para comigo,
albergando sentimentos obscuros insuspeitos para mim,
dada a nítida e notória fraternidade mínima do nosso relacionamento até então.
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Era fácil: com manha e jeito, lavando as mãos como Pilatos,
não tardaria a usar contra mim a reles amante como testa de ferro, simbólica ponta de bota,
com aquela bífida língua maldita em êmbolo. Ela foi o meu chuto no cu.
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Oseias, esse, ainda lá está no escritório-arrecadação com os seus gases de alquimia,
a sintetizar acidulados odores suaves de mais
para tão corno nariz patronal.
Comments
Nesta fase da nossa cumplicidade, a nossa amizade agradeceria tal ingenuidade!
PALAVROSSAVRVS REX
Deixei de vir por cá há uns tempos, você, embora escrevendo bem, ficou sem graça, azedo, repetitivo, irritante, você tornou-se num coitadinho militante por opção.
Cheguei a chamá-lo à atenção sobre o que escrevia relativamente ao seu emprego, que muito ou pouco devia fazer-lhe jeito, que escreveu você?
Que o seu patrão era seu amigo, e agora? Quem é o tal filho da puta? É o seu amigo que o traiu, que o mandou para o desemprego, ou o aliado que pagando tarde e a más sempre pagava?
Como faria você se estivesse dando emprego a alguém e lhe dissessem que essa personalidade dizia cobras e lagartos de si?
Sabe que os tais homossexuais, as prostitutas, as de leste, portuguesas, brasileiras, os borrachões, os altivos, enfim, todos aqueles que você xingou nos seus escritos, com muito ou pouco no bolso, continuam a passar por lá, pelo pub?
Que dirão eles quando o não encontram?
Será que dizem “pobre Joaquim”, ou “puta que o pariu, tinha a mania que era professor?”.
Você recorda-se bem de como os “pintava”, com os mesmos guaches com que pinta hoje o seu ex-patrão.
Vou deixar de o visitar, você é um caso quase perdido, você preocupa-me, e eu não tenho espaço para ver alguém, de quem até se gosta, auto-mutilar-se.
Quando tu, de cima, olhares para tudo, ainda te irás rir da fase menos boa que as circunstâncias da vida te obrigaram a passar..
Espero que consigas arranjar um emprego onde te sintas melhor e assim te dê uma melhor qualidade de vida.
Beijocas grandes
Eu não, frontalidade, fluência, verbo, arrear "em", arrear "nos", é próprio de quem não vende a sua pena! Se eu não gostar de um livro não o leio!
Viva Oseias e vivam as suas meias!
Um abraço sem meias medidas