CALOIRA LABORAL


Tive um arrepio na espinha piedoso esta manhã, num Pingo-Doce perto de mim.
Tudo estava normal nas respectivas prateleiras.
Os vegetais entre os vegetais. Os doces entre os doces.
Os laticínios entre os laticínios. As carnes com as carnes.
Os mesmos reformados e mães de família cabisbaixos
nas mesmas compras escassas e residuais.
Os mesmos imigrantes, com as suas latas de conserva, as suas Vodka-Negra,
os seus telefonemas intermináveis
nas suas línguas guturais e ásperos sons consonânticos.
lkj
Mas depois, na caixa, tremendo muito, figurava uma jovenzinha,
muito jovem, jovem a doer, nova ali, frágil, assistida por uma hirta funcionária mais velha,
que a ladeava, notoriamente mais experiente, mais calejada e controlisticamente sisuda.
A mocinha estava numa tensão que me gerou dó sincero.
Olhei sistemicamente para ela como fruto de um telefonema sistémico:
«Está, é da Jerónimo? Daqui é o PM.
Menina, ligue-me com o Chefe... Está? Jerónimo? Porreiro!
Ó pá, era só para te lembrar que está na hora de, a nível nacional, exacto!,
encaixares, pois,... encaixares aí provisoriamente
uns milhares de contratados. Sim... Sim. Tínhamos combinado.
Os números, pá, os números do desemprego, pá...
Sim, sim, esganam-me a reeleição.
Fazes isso? Ok. Porreiro, pá.»
lkj
A jovenzinha tinha um ar de não acreditar no que lhe estava a acontecer:
estava a trabalhar. O dinheiro dos clientes fluía-lhe num movimento de tear mecânico:
mãos, máquina registadora e mãos novamente
sob a forma de trocos entregues por cima do recibo na concha manual estendida dos clientes.
Muito tímida, muito enfiada, cumpria penosamente a sua tarefa.
Um ar de medo punha-a sombria como se em casa sofresse violências.
Registei a sua semelhança a uma Hepburn portuguesa, ar inocente, bela e insegura,
e em microssegundos como que sofri com ela
esta simples fase iniciática laboral em que os dias se sucedem iguais, amedrontados,
os automatismos e os hábitos se adquirem e fortalecem o ânimo,
o sorriso mais seguro e esperançoso começa a florescer,
até que, inesperadamente, precisamente aí, dentro da experiência e do calo,
antes de o prazo de todas as caducidades caducar,
alguém lhe vem dizer a contra-corrente:
«Eh, pá, menina, olha, isto vai mal... Vamos ter que fazer uns cortes no pessoal...
Para o próximo mês já não contamos contigo. Passa na Contabilidade
para fazermos contas.»
lkj
Em Portugal, o desemprego abate-se sobre experientes e calejados.
Quanto mais não se abaterá sobre caloiras laborais, como esta menina Pingo-Doce.

Comments

antonio ganhão said…
"O dinheiro dos clientes flu�a-lhe num movimento de tear mec�nico."

Tu sabes da poda e est�s l� t�o perto. Um bocadinho menos de narcisismo.

Um texto em que tu n�o entres, s� te pe�o isso.
joshua said…
Procurai e achareis. Pedi e ser-vos-á dado. Batei e abrir-se-vos-á»

Implume, implume, a vida está boa para as tuas férias. Estás quase lá enquanto mestre. Vou, porém, ter de ausentar-me de ti por muito, muito, muuuuuito tempo, e por isso mesmo da tua Montanha das Bem-Aventuranças da Escrita também.

Tenho um Deserto a Percorrer narcisisticamente.

Até qualquer dia, Emplumescente, e quiçá-quid-sapit Plumitivo, Amigo.

PALAVROSSAVRVS REX
almariada said…
Narcisismo?! Chamo-lhe sensibilidade! Há quase 30 anos aconteceu-me ser uma menina assim - depois a vida levou outros rumos - e gostei muito deste post precisamente porque nunca me passou pela cabeça que pudesse haver um cliente com sensibilidade para ver e descrever isto... pelo contrário: ficavam muito chateados por não ter ido para outra caixa mais despachada, com mais experiência e menos sentimentos...

Popular Posts