A CIDADE E A CANALHA ANÓNIMA
A cidade do Porto parece um organismo semimorto que recusa a ideia de que agoniza.
Quando o automóvel estaca no centro da larga avenida, rumo ao Marquês,
pode ver-se bem à esquerda e bem à direita a face da devastação:
passam-se estabelecimentos às dezenas,
vendem-se apartamentos e casas às centenas e, à porta dos mini-mercados,
homens na casa dos quarenta, mendigam por moedas, com o seu olhar baixo,
o jeito e o trejeito da humilhação habituada, rendida, acanhada,
com a sua roupa feia, coçada, vulgar, amarelenta, com a sua barba crescida
e o seu cabelo desalinhado. Fazem o seu número e o aplauso ou a indiferença
serpenteiam-lhes os corpos, cada qual olha pela sua vida.
lkj
Recebem normalmente da enfadada e ensacada dona de casa
um esgar de assentimento ao pedido: ela abre o carro,
senta-se, enquanto pousa as sacas no banco de trás, pousa a bolsa,
abre a bolsa, escolhe uns trocos, levanta-se, soergue-se, estica o braço
e deixa-os cair tilintantes na palma da mão do adulto pedinte,
já de olho na próxima possibilidade. De repente, o pobre homem olha para mim
e, fitando-me agudamente numa pose de estátua, percebe que tive os olhos postos nele
prolongadamente a fim de captar toda a cena como num diálogo.
lkj
Regresso à condução. O semáforo abriu. Meu coração de pai lateja
refrescadamente pelo abençoado rebento, fragilidade da minha fragilidade.
Mas penso nas lambadas que desde há três anos a vida portuguesa me dá,
nas portas sucessivas que me fecha, as multas-cretinescas, o Fisco-animal,
azares de todo o teor, desemprego-filho de uma puta concreta e deliberada
e pergunto-me: estarei assim tão longe da capitulação
patente naquele homem implorativo?
lkj
Enquanto isso, sabe-se que o Ministério Público teve conhecimento
das ligações estreitas entre o BPN e o Banco Insular de Cabo Verde
em 2007, quando investigou movimentos de crédito suspeitos entre as duas instituições,
revelou à Lusa fonte do grupo Sociedade Lusa de Negócios (SLN). Continua a suspeição
e continua, ainda mais feliz e saudável, o anonimato-canalha de que tudo isto se reveste.
A Justiça, o Direito e a Diligência processual, como em tantos e tão famigerados
exemplos portugueses, continuam e continuarão cegos, moucos e mudos.
Comments
É o Portugal que temos.. e cada vez mais ter um trabalho é uma benção!
O dinheiro é finito e as prioridades estabelecidas são na defesa do capital, ainda que lhe chamem economia. Nem sei se me revolto mais com a má distribuição da riqueza, ou se pela ineficácia da justiça, mas de qualquer modo, deixei de confiar na classe política que nos dirige - para o abismo.
Boa semana
Abraço do Zé
P.S. - Já escrevi o texto contra o TGV. Um destes dias publico-o.