CRÓNICA A UMA PRAÇA


Conheço o Porto como a palma das minhas mãos. Não resisto a escrever
esta frase estúpida hoje, dia em que me senti particularmente estúpido,
perdido e infeliz na minha cidade tantas vezes percorrida por meus pés.
Não pus os pés no espaço que a foto ilustra, mas na envolvente
da Praça do Marquês, por onde me vi deambulando, numa tristeza de morte,
enquanto observava mais de perto, na cara das pessoas, de todas elas,
histórias tácitas do que se passa no meu País e não só comigo.
Abafa-se de miséria. Confeitarias e quiosques ombreiam
por estes peões e pedestres que se lhes roçam por pastéis e por notícias
e são fundamentalmente velhos portugueses envelhecidos,
jovens brasileiros e brasileiras laboriosos, desbravando sobrevivência,
quase nenhuma gente madura activa por cá nascida vislumbro.
Por que Angolas andam agora pretos os próprios portugueses catando e servindo?
Por que Europas frementes de crise e de neossocialismo renascido das cinzas
e mal refeito delas labutam esses braços e essas mentes aqui proscritos?
Como nos refazemos de imposturas ideológicas, neoliberalismo e socialismo,
e do biombo hipócrita delas, ficar por cima quem sempre esteve?
lkj
Paro defronte à Praça, no movimentado passeio norte, à Costa Cabral,
tenho um vazio agudo no meu peito e uma encrizilhada no coração.
Duas filhas amadas, pequeninas. Um País despedaçado de tirania, abafado de mentira.
O mundo desmoronando todo ele. Evidentemente sofro angústias todos os dias
e escrevo como quem foge e enfrenta e se sabe muito remotamente compreendido.
As luzes públicas de Natal acendem pobres e piscam despojadas.
Recomeço a sofrer ainda mais.
Duas putas fazem-me o favor de, ao passar rente, me abalroarem o corpo
só em êxtase por sofrer, chamando-me de novo para o chão por onde passam.
Pernas bem expostas, bem apreciáveis, na sua dimensão carnuda, nua, inteiriça,
realçadas por quase-meias, o olhar cabisbaixo, internacional,
súplice e envergonhado, pontua-lhes a passagem bruta que se não desculpa
como se a seguir alguma vez eu as seguisse por satisfações ou satisfação.
lkj
Compro eu mesmo um jornal Público de papel por trás de mim
e pergunto por uma farmácia. Há um umbigo tenro a preservar
e a tratar com gaze pura, limpa, esterilizada. Pela segunda vez, em apenas dez minutos,
sou ajudado com uma amabilidade extremada: primeiro pela empregada da confeitaria,
jovial e solícita ao servir-me a nata e o galão que lhe pedira,
e depois me folheia o jornal da casa na pista de uma de serviço
mas não consegue ser exacta nem clara;
depois pelo pobre rapaz simples do quiosque, que,
igualmente folheando solícito um jornal num automatismo de máquina eficiente,
me encaminha com exactidão e humanidade
para uma Rua e um número de porta exactos de Farmácia,
ali, na Costa Cabral.
ljj
Avanço. Automóveis e cidadãos circulam. Nas minhas costas, a praça escurece
e as folhas de árvore que se acumulam e pejam de castanho a estrada,
são o meu povo traído, longamente traído,
pelos desmandos da democracia, pela podridão
escondida e revelada, que ela engendrou e se vai alimentando
do meu sangue, do sacrifício moral e vital de muitos e muitas.
É preferível não olhar nem as folhas de árvore nem as gaivotas que riscam
o céu de essa rua com oblíquas rasas aos pares de um lado ao outro lado,
aguardando por lixos e por mortes mínimas.
lkj
Pipilam outras aves, mas o asfalto triste e os rostos baços têm a assinatura tensa
de um futuro já presente que rosna de despeito à liberdade,
que espuma de autoritarismo e punição à verdade.
Mentira e propaganda são-nos dadas a engolir todos os dias
até ao engasgamento do tédio. Ei-la a Farmácia.

Comments

MS said…
... quadro triste de uma cidade que 'anoitece' :(

Sensibilizada pelo olhar fraterno em 'fragmentos'!
Um beijo
kiatsan said…
Hi there. Thanks for your comment written in my blog recently.

Although I can't read the language in your blog, but your blog with the photos seem quite interesting too. Cheers !!
Tiago R Cardoso said…
meu jovem, vou imprmir isto e ler hoje ali no Norte para onde vou.

Para já um para tu colocares num livro, voltarei logo.
spulzeer said…
HI,
you left a comment on my blog, and thank you, but i can not read portuguese -is it portuguese?-.

Kisses
peter_pina said…
oh obrgd por este bokadinho...tenho umas saudades do Porto..ja la vao 6 anos..., abraço
Zé Povinho said…
Para esta doença não há fármaco que se possa prescrever. Talvez a vontade de mudar seja uma solução, mas haverá gente suficiente com coragem?
Abraço do Zé
Tiago R Cardoso said…
gostei das divagações que fazes ao longo do caminho.

Caminhas num sentido mergulhando em pensamentos, em reclamações, em perguntas.

Crias assim um texto que me fez caminhar contigo ao teu lado, brilhante momento.
antonio ganhão said…
E nessa farmácia encontraste a cura para os nosso males, a nossa redenção?
Blondewithaphd said…
Não conheço o Porto. Mas conheço tantos quadros como este que pintas. Sabes; li o teu texto como quem lê o Outono. Não sei se me percebes mas gostava que sim. Escreveste em Outono...
Pata Negra said…
Eh pá! Não vou trair o passeio de domingo com comentários - tal qual as pedras da calçada não são vistas na história e são a base, também as folhas de papel do livro que aqui se exige não são chamadas mas fazem-me falta. Parabens Joshua.
Um abraço mesmo abraço
goooooood girl said…
your blog is so good......

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