8 PONTOS NA NOITECARNE


1. Acabara por ser mais um dia angustioso para mim.
Tinha pensado imenso na minha mãe
à luz da posta fabulosa do Luís Galego sobre a dele - aquela carta-posta aberta
dirigida à deputadagem do País e o seu tom intenso é um toque de génio! - e foi
no meio de essa meditação participativa que me ligaram
alarmando-me subita e inesperadamente quanto ao estado de saúde da minha mãe.
Eu, que já estava na estrada de regresso a casa,
após uma muito gratificante manhã a leccionar,
depois de esse baque, tive de me lançar em vôo aflito.
lkj
Enfim, levada de emergência antes mesmo de eu chegar,
teve de passar bem mais de seis horas na Urgência,
nessa via-sacra de sempre, penando, a par de muitos outros mais,
as esperas mortíferas de que se faz o nosso SNS.
Havia punhos em mim prontos a fechar-se em chicote.
Contive-me. Senti de novo na pele o que vou sentindo na alma
em solidariedade com a massa silenciosa crescente de oprimidos e excluídos do meu País.
Agora parece, graças a Deus, que o pior já passou.
lkj
2. Às vezes é por pura vaidade e excesso de ego que nos consentimos
a leitura ou o dar atenção ao lixo mais reles. Pela minha parte, abdiquei de me contaminar
um microssegundo sequer com a mais ínfima parte dele.
E a sensação de desprezar sinceramente certas infecções morais ambulantes
é deveras redentora! Para quem, como eu, adora ler tudo, é uma revolução
não mais incluir o lixo. Refiro-me sobretudo a comentários diários que recebo
habitualmente e que logo apago sem ler, diagnosticado o doentio emissor.
lkj
3. As primeiras horas no meu part-time nocturno são muito similares
ao ante-missa: chegam pessoas, cumprimento-as, recebo-as, entram e perdem-se
no negrume médio-iluminado. Há sussurros de terços rezados,
comedimento conversacional. Onde, na missa, as velhas a espaços suspiram
religiosos suspiros e inclinam muito as cabecitas obliquando muito os seus queixinhos
o resto do tempo perpendiculares, neste Pub,
outro tipo de velhas quer é um rosário de galanteios e de anedotas frescas,
vestidas com picante, cores garridas provocatórias de interesse em sexo,
maquilhadas que estão para longas horas numa vigília de dança e suor.
De repente, começam os cânticos e as orações. Começa o culto.
lkj
4. A prostituição aqui é intergeracional e tem matizes amplas
na sua montra criativa. Elas saem muito para telefonar, invitativas.
Esta, que tenho diante de mim, já perto dos cinquenta, ostenta as rugas da experiência
e o fecho da saia por fechar ou danificado desenha-lhe
como que uma redundância de vasto rasgão no fim das costas
e início das naturais mediações escatológicas ocultas.
A vida plantou-lhe na face, em vez de um sorriso,
uma carranca halloweenesca.
kjh
5. Três liverpoolianos doidos assomam. Um já bebido casal dentro dos sessenta
e uma 'acompanhante' a roçar os trinta, muito gesticulante
e com trejeitos e olhos famintos de macho urgente.
Os seus modos e dicção fechada são reveladores do seu bas fond liverpooliano.
Chegaram. Perguntaram. Depois dividiram-se quanto a entrar ou não.
Primeiro, a ele não lhe agrada o preço. Ficaram altercando à parte, coloridos.
Depois, decidindo não entrar, partiram. Mas menos de cinco minutos passados
já o velho e a jovem regressavam desta vez para entrarem mesmo.
Hesitaram em tudo. Hesitaram no modo arrogante
como inicialmente se me dirigiram
entrecortando-o com contida delicadeza.
A moça estava notoriamente a arder por sexo e o velho começou a compreender como,
caso permanecesse ali, o destino seria ficar ela nos braços de outro bem prestes.
Foi a zaragata, a arruaça. Ele, bêbado e cambaleante,
cheio de «sorry's!» para mim, a insistir desesperado
por que ela saísse. Ela, agressiva e corporal, a pretextuar ficar,
protelando partir, gritando-lhe: «Ya not my boyfriend!», perseguindo-o, batendo-lhe.
Já cá fora, tudo pago, ela desejava reentrar e movimentava-se
como uma pantera confinada em jaula pequena.
Ele gritava-lhe.
Ela batia-lhe.
Ele fugia,
esquivando-se cambaleante atrás de mim e de outros circunstantes.
E a cena ameaçava reeditar-se infinita, (ele, bem magro, estava em desvantagem)
até ao momento de uma suave persuasão com respectiva excreção
de tão bizarras personagens com as suas birras e bizarrias estranhas.
lkjh
Isto é a Europa do lowcost a penetrar de heterolíngua e heterocultura
todos os nossos humildes recantos, enchendo-os de peculiar.
Teremos muito o que contar acerca de estas frescas invasões fáceis e económicas
lá do Norte europeu saxo-anglão.
De repente, ficou mais frio!
lkj
6. O homem das duas eslavas voltou.
Desta vez não trazia o ar de merceeiro tão acentuado.
Notei apenas novos pormenores no seu olhar medeiros-ferreireano,
na sua prótese ocular nova e na sua abusiva água-de-colónia.
As duas eslavas vinham também, felicíssimas, já dançando ao longe
e, por momentos, lembrei o frade vicentino e senti-me arrais também de uma clara barca.
Aproximaram-se sorridentes, muito belas - nunca será de mais repetir isto:
eram muito, muito belas! - sempre a dançar, sorrindo e sorrindo.
Sorri-lhes também. Entraram.
Só depois entrou ele, zeloso, ciumento em cio, pesado,
inexpressivo, a pensar certamente no custo preliminar de esse ménage à triciclo.
Trazia aquela vaga tristeza de avaro comerciante muito a custo liberal com dinheiro.
Progredira na idumentária. Mantinha, porém, o inevitável aspecto de pequena pipa vertical
ou barril humano onde repousa o insuspeitado vintage da lascívia
e da terrífica solidão.
kjh
7. A noite é cheia de surpresas insólitas. Desde o vendedor de rosas
que vem desabafar comigo as suas complexas e insólitas lides africanas
com a Justiça injusta, discricionária e implicativa portuguesa,
ao cliente que desaba aflito, vindo de dentro, engasgado,
em convulsões dramáticas, desesperado de morte, derrubando estrepitosamente
com tudo no meu posto. Ondas na rebentação à minha vista, as pessoas vêm e vão
num fluxo e refluxo de humanidade, plena epifania do transcendente,
irrompendo de prosaico em prosaico.
lkj
8. Os meus relatos da noite são uma enundação de verbo, confesso.
O meu olhar-rã salta de nenúnfar em nenúnfar, sempre crivado de surpresas.
É mais fácil deslocar o verbo para este meu tão novo contexto
do que para a minha intermitente vida docente, cheia de sacrifícios e privações.
Só sei que num caso como noutro acomete-me uma infinita paciência benevolente,
que vai jorrando ilimitada do meu coração para com quem me é dado pastorear de atenção.
É da minha natureza ser compassivo e delicado seja com quem for,
saber escutar e aceitar, tantas vezes maravilhado, a natureza de cada qual.
lkj
Sei que a Divindade esponjabsorve amorosa e benevolentíssima
quanto há de humano no humano. Por que não havería de imitá-La?
lkj
O dia está a nascer. É tempo de ir para casa
e desabar exausto na minha cama.

Comments

quintarantino said…
Muito deves tu ver na noite...
... as melhoras para a tua mãe... ânimo e força, amigo e companheiro.
Ricardo Rayol said…
Meu amigo, realmente fiquei curioso em saber onde trabalha.

e melhoras para sua mãe.
antonio ganhão said…
Sim sempre te vi assim nesse teu novo emprego, um diácono que acolhe as suas ovelhas, ciente que se não fossem tresmalhadas, não as encontraria.

O mais improvável diácono, acolhe as mais que prováveis ovelhas...

As melhoras da tua mãe.

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